A Fundação Itaú Social e a aparente beleza filantrópica do terceiro setor

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Em 1890 o fotógrafo Jacob August Hiis publicou o livro “How The Other Half Lives”[1] no qual mostra, em um ensaio fotográfico, as mazelas socioeconômicas às quais os trabalhadores norte-americanos eram expostos. Tal era a situação, no final do século XIX, em que o empresariado estadunidense deixava seus empregados. Figuras notórias como Andrew Carnegie, o magnata do aço, explorava seus trabalhadores em jornadas de 12h, sete dias por semana e eram descartados logo que apresentassem incapacidade física ao trabalho, chegando em 1880 com 20% de mortes por acidente de trabalho nas suas empresas.[2]

Eram muito comuns os trabalhadores serem reprimidos com violência extrema quando faziam greves. É o caso do massacre de Ludlow, em 1914, no estado do Colorado, que resultou na morte de 13 homens, 2 mulheres e 11 crianças.[3] O massacre foi perpetrado pela guarda do Colorado e pela guarda particular da Colorado Fuel and Iron Company, uma empresa da família Rockefeller comandada por John D. Rockefeller Jr, o magnata do petróleo.

O Massacre de Ludlow comoveu a opinião pública norte-americana e foi seguida de processos que tramitou no congresso dos EUA da qual passou a investigar a conduta violenta e repressiva do empresariado. É a partir daí que entra a atuação de Ivy Ledbetter Lee, considerado o criador das relações públicas. Alguma coisa precisava ser feita para limpar a imagem negativa do massacre de Ludlow e Lee recebe como cliente John Rockefeller (que recebeu o apelido de barão ladrão), que instruiu e criou uma série de ações que foram seguidas por Rockefeller, a partir de 1914, no objetivo de criar uma imagem nova, transformando o empresário tirano e intransigente em empresário socialmente justo e generoso filantropo, tornando-a palatável para o público.

Nos anos 40 tem-se um salto qualitativo em dois pontos: O primeiro é a mudança positiva que a imagem de John Rockefeller passa ao público e a segunda é que as relações públicas passa a ser a política comum dentro das empresas. Universidades começaram a criar e lecionar o curso de relações públicas, visando formar profissionais para as empresas. As ações sociais e as formas de apresentações em conferências para a sociedade civil, que inclui desde formas de se portar até o uso de linguagem que adira positivamente no público, é o biombo desse grupo, que transmite para o círculo fora das empresas uma boa imagem, enquanto que as relações internas de trabalho continuam ruins ou mudam pouco para os trabalhadores.[4]

Dentro das relações públicas cria-se os stakeholders, que são as partes interessadas em um negócio. As empresas mapeiam os impactos sociais e ambientais de suas operações sobre as diversas frações da sociedade civil à sua volta e, então, forja mecanismos para mitigá-los. É a partir daí que ONGs, fundações e institutos iniciam suas ações.

Essa recente forma de controle social criada por parte desse grupo de interesse do empresariado estadunidense obviamente gerou custos e, portanto, se tornou necessário criar meios, pressionando o Estado, para o retorno deste investimento aos cofres das empresas. Então, o Estado passa a promulgar leis dando isenções fiscais para as empresas que praticarem ações sociais. Trocando em miúdos, o capital repassado, pelas empresas, para as instituições filantrópicas será retornado em benefícios fiscais para estas mesmas empresas na forma, por exemplo, de redução dos impostos devidos. Nos EUA a lei das organizações sem fins lucrativos, a 501(3)(c) descrito no Internal Revenue Code, é a maior expressão desse mecanismo.

Assim, um fenômeno começa a aparecer: O embrião do enfraquecimento do Estado como promotor social via organizações sem fins lucrativos começa a ser germinado. Mais tarde tal fenômeno se consolidaria preenchendo o vácuo deixado pelas políticas neoliberais praticadas ao redor do mundo. O Estado neoliberal reduz os investimentos no campo social e oportunisticamente é preenchido pela iniciativa privada se utilizando dessas organizações.

Décadas mais tarde outro salto qualitativo acontece no fenômeno da filantropia da classe dos empresários. Entre 1975 e 1977 o filho mais velho de John D. Rockefeller Jr, John D. Rockefeller 3rd, produz uma série de conteúdos em artigos de jornais e relatórios de propostas ao governo dos EUA[5] e cunha o termo “terceiro setor”.

A proposta de Rockefeller 3rd se baseia no tripé da sociedade civil: Estado, iniciativa privada, e para o terceiro tripé, filantropia, cria duas comissões cujos esforços serão dedicados a salvaguardar o seu papel. O primeiro desses esforços foi a Comission on Foundations and Private Philanthropy (1969-70), presidido por Peter G. Peterson e chamada de Peterson Comission. A segunda e mais amplamente conhecida foi a Comission on Private Philanthropy and Public Needs (1973-1977) e chamada de Filer Comission porque seu presidente era John H. Filer. Embora a Peterson Comission tenha sido a primeira a ser fundada (inclusive foi usada para burlar a Lei de Reforma Tributária de 1969) foi a Filer Comission que ficou com o crédito por ajudar a divulgar o nome e a identidade consciente de um “terceiro setor” separado de empresas e governos. Esse novo setor foi composto por inúmeras organizações sem fins lucrativos que incorporou uma variedade de atividades filantrópicas e voluntárias nos EUA.[6]

Este modelo é exportado para o mundo e chega ao Brasil no início dos anos 90, onde encontra teóricos que irão validá-la, como é o caso da socióloga Ruth Cardoso. Mais tarde o terceiro setor ganha ares de legitimidade quando é sancionada a lei 9.790, que ficou conhecida como a Lei do Terceiro Setor, pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso no seu segundo mandato, em 1999. O levantamento do IBGE de 2012[7] mostra o vertiginoso crescimento das associações sem fins lucrativos. Em 2002 existiam no Brasil 275.895 destas associações e disparou para 556.846 em 2010. Atualmente quase toda grande companhia tem alguma fundação ligada ao seu nome.

A disputa pelo Estado

Sob o avanço do neoliberalismo somado ao fenômeno do terceiro setor é comum dizer que o Estado perdeu força, ou seja, está sob o conceito de Estado mínimo. Mas, talvez, seja pertinente perguntar: Estado mínimo para quem?

O Estado é condição necessária para a existência do capitalismo, portanto, o Estado perde força, no caso poder de atuação, para determinada classe, enquanto que outra se fortalece. Logo, o que está se desenvolvendo é o aumento de poder sobre o Estado por parte de um grupo de interesse de alguns empresários devido ao avanço das atuações do terceiro setor.

Sob esse prisma, é através do terceiro setor que essa classe passa por cima do sistema político do Estado e passa a gerir a sociedade, ela mesma, cada vez mais diretamente, sem precisar do sistema político representativo. Apesar de tal classe atuar na política do sistema representativo (doações de campanha, por exemplo), há o empecilho (é o fator risco incluído) de eleger políticos que não representem sua classe. Este risco diminui quando a condução da sociedade está em poder direto de tais grupos. É uma verdadeira tirania desses acumuladores sobre frações da sociedade. Logo, a democracia burguesa vai esvaziando em conteúdo, sendo substituído pelos profissionais que atuam nas ONGs, fundações e institutos. Esses profissionais, por sua vez, são preenchidos ideologicamente dentro da cartilha empresarial e passam a operar semelhantemente às relações sociais internas das empresas.

Na prática é o que acontece com o Instituto Itaú Social, que atua no setor educacional. Com uma agenda executiva, os profissionais de educação trabalham cumprindo metas como se estivessem dentro de empresas, ao passo que modificam currículos escolares para ofertar pessoas formadas estritamente para o mercado de trabalho, reduzindo qualquer chance de ampliar o leque de estudos para além da área empregatícia.

Como vimos, até o limitado sufrágio universal da democracia burguesa, materializado no voto, tende a se tornar apenas um teatro, onde, na prática, quem determinará nossos destinos, enquanto sociedade, serão pessoas representando diretamente quem acumula capital e que não foram eleitas por nós, mas que disseram que tem a boa-fé de nos ajudar.

Eis a filantropia burguesa.

Por Léo Camargo,  articulista na iniciativa A Voz do Brasileirismo: Nacionalidade em Rebeldia

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Referências bibliográficas

[1] How The Other Half Lives, Jacob A. Hiis, New York, Charles Scribner’s Sons, 1890

[2] https://www.reference.com/business-finance/did-andrew-carnegie-treat-his-workers-de36d945a374a10f

[3] http://libcom.org/history/articles/ludlow-massacre-1914

[4] https://www.researchgate.net/publication/228537212_Ivy_Lee_and_the_Rockefellers’_Response_to_the_1913-1914_Colorado_Coal_Strike

[5] Arquivos da família Rockefeller: https://dimes.rockarch.org/xtf/view?docId=ead/FA108/FA108.xml;chunk.id=d7ca41dc1f4641fc8cd540224b3d7f4e;brand=default&doc.view=contents

[6] https://www.researchgate.net/publication/282213551_Private_Charity_and_Public_Inquiry_A_History_of_the_Filer_and_Peterson_Commissions

[7] https://www.ibge.gov.br/estatisticas/economicas/outras-estatisticas-economicas/9023-as-fundacoes-privadas-e-associacoes-sem-fins-lucrativos-no-brasil.html?edicao=9024&t=destaques