Juscelino Kubitschek: Um Gulliver na Lilliput Tropical

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“As viagens de Gulliver” é o título em português da obra imortal de Jonathan Swift, escritor irlandês que eternizou na metáfora do gigante Gulliver na ilha dos minúsculos cidadãos de Lilliput, as agruras e perseguições que invariavelmente aguardam todo ser humano de gênio que chega a este mundo.

Entre os Gullivers de nossa história, nenhum foi maior que Juscelino Kubitschek. O médico mineiro nascido humilde na pequena Diamantina, que entrou por acaso na política, realizou num período conturbado de nossa história o mais espetacular mandato que se viu neste país.

Eleito pela coalizão PTB-PSD que sustentou Vargas para dar seguimento a seu projeto, venceu uma conspiração que queria impedir sua posse e assumiu um país deprimido e fraturado pelo golpe que culminou no suicídio de seu maior estadista. JK foi de Getúlio sempre aliado incondicional até o último momento e depois, sendo o único governador a comparecer a seu velório. O Brasil enfrentaria durante seu mandato mais três tentativas de golpe da direita brasileira, que sempre foi a mais criminosa, antinacional e antidemocrática do mundo.

O Brasil era então uma imensa Bolívia só habitado em seu litoral, com unicamente oitocentos quilômetros de estradas pavimentadas. Importávamos aço, cimento, derivados de petróleo, carros e toda espécie de manufatura.

Seguindo o projeto nacional-desenvolvimentista de Vargas criou seu “Plano de Metas”, com o qual promoveu a mais fantástica epopeia de industrialização em um mandato democrático do século XX. O país cresceu nos anos JK, entre três tentativas de golpe e campanha permanente de desestabilização, cerca de 8% ao ano, e a produção industrial 80% em todo o período.

Na indústria de transformação o resultado foi ainda mais espetacular, um crescimento de 186%. Foram gerados 1,6 milhões de Kw, produzidos 75 mil barris de petróleo por dia, 650 mil toneladas de aço e 133 mil carros e caminhões.

O país foi aos poucos sendo tomado pelo otimismo crescente de quem via uma indústria automobilística inteira se instalar, a produção de aço dobrar e a matriz energética se tornar hidroelétrica, através da construção de Furnas e várias pequenas usinas.

Foi JK quem de fato tirou do papel e implantou a Petrobrás, motivo máximo da campanha e do golpe norte-americano contra Getúlio. Construiu a REDUC no Rio e com ela a autossuficiência brasileira em derivados de petróleo, que hoje já perdemos. Rearmou exército e marinha e cortou o país com 17 mil quilômetros de estradas pavimentadas como a Régis Bittencourt, Fernão Dias, Cuiabá-Rio Branco e Belém-Brasília.

A construção de Brasília em apenas cinco anos é o maior marco de sua vida. Maior epopeia brasileira, o surgimento dessa cidade magnífica feita de sonho e concreto – síntese física da capacidade e gênio da cultura brasileira – interiorizou o país e o dotou de um senso de auto eficácia e otimismo que teriam valido dez vezes seu custo.

Sabotado de todas as formas pelo jornal O Globo que lutava contra a transferência da capital, JK teve que enfrentar a tentativa do FMI de parar Brasília, sempre em nome da “austeridade”. Rompeu com o Fundo e bancou soberanamente a conclusão da capital com crédito nacional.

Diante desses verdadeiros prodígios obrados por nosso Gulliver em nosso benefício, os cidadãos da Lilliput tropical se dividiram (e se dividem até hoje) entre a admiração e o temor ao gigante. Marionetes perenes dos interesses dos EUA em impedir a todo custo nossa ascensão como superpotência, tentaram amarrar e cegar o homem que já não conseguiam matar por ter se tornado um mito. Hoje em dia, se esforçam para destruir sua memória e seu significado histórico.

Os “liberais”, sempre inimigos de nosso desenvolvimento, massificaram a versão de que Brasília foi a responsável pelo início da inflação brasileira, mesmo diante dos fatos facilmente verificáveis de que esta era uma doença crônica de nossa economia, que JK recebeu a 19,2% ao ano e entregou a 30,9%. Comparada à média inflacionária de outros governos brasileiros, os números de JK eram modestos. Acusaram-no de aumentar nossa dívida pública, que satanizam, mesmo que ela tenha sido usada exatamente para o que ela deveria servir: alavancar nosso crescimento industrial e infraestrutura.

Os comunistas, que participaram de seu governo, denunciaram o projeto da nova capital – de seus camaradas Lúcio Costa e Oscar Niemayer – como inviabilizador da revolução popular. O resto da esquerda acusou Juscelino de ter aumentado a concentração de renda, apesar de ter promovido o aumento de nossa renda per capita em cerca de 23%, ampliado o mercado interno com uma arrojada política de crédito ao consumidor e ao fim de seu mandato ter deixado o salário mínimo no maior nível real de sua história até hoje.

Os nacionalistas da época acusaram JK de abrir a economia ao capital estrangeiro e desequilibrar nossa balança de pagamentos. Mas se esquecem até hoje que essa abertura foi setorial e equilibrada com fechamento de setores estratégicos. Em seu governo, os capitais externos só podiam entrar para investimentos de risco e associados ao capital nacional, e a isenção de taxas de importação abarcava somente bens de produção industriais.

Acusam também, corretamente, JK de abdicar do desenvolvimento de uma indústria automobilística genuinamente nacional para realizar sua rápida implantação. No entanto antes dele jamais tínhamos produzido um único motor em nosso território. O “Simca Chambord” brasileiro que JK teria destruído é uma “Ancient Fake News”: o carro foi produzido no Brasil pela primeira vez em 59 pela antiga Simca, francesa, que se instalou no Brasil em seu governo.

No Brasil nossos liliputianos chegaram inclusive a acusar JK de construir rodovias! Sim, o velho lamento da destruição de nosso transporte ferroviário supostamente para a implantação da indústria automobilística, capitaneado pelas cidades que eram atravessadas por linhas de trem. A verdade, no entanto, é que a rede ferroviária permaneceu intacta, e foi progressivamente abandonada para boa parte de seus usos anteriores porque era menos flexível e viável economicamente, seguindo uma tendência mundial.

O lixo da imprensa brasileira, que sempre foi um negócio oligarca de venda de “notícias”, chantagem do poder, controle das consciências e títere dos interesses norte-americanos, moveu uma implacável campanha moralista de acusações de “corrupção desenfreada” em suas obras e até de suposta “propriedade oculta” de um apartamento na Vieira Souto que não era dele, em caso bizarro muito semelhante ao que hoje levou Lula à condenação. Carlos Lacerda bradava das tribunas de papel que Juscelino era o 7º homem mais rico do mundo.

Por fim, o regime militar, consequência direta da artificial histeria moralista de nossa imprensa golpista, se instaurou em nome da democracia, cancelou as eleições de 65, depois cassou seus direitos políticos, o expulsou do país e finalmente o assassinou na operação Condor.

Juscelino Kubitschek era um homem de carne e osso, com seus defeitos e contradições. Cometeu seus erros mas morreu como viveu, com um patrimônio modesto. Cedeu ao golpe de 64 sob a promessa de que haveria eleições em 65. Contemporizou com golpistas, aumentou nossa dívida externa e optou por um atalho equivocado para nos dotar de indústria automobilística.

Não era um socialista, mas era amigo deles. Foi um democrata inveterado e um desenvolvimentista. Acima de tudo, Juscelino era um brasileiro. Um brasileiro que amava profundamente nossa gente, nossa terra e nossa cultura. Que acreditava em si e em seu país até os ossos.

Figuras gigantescas como JK causam admiração e inspiração e ao mesmo tempo nos oprimem com o peso de nossa irrelevância pessoal e histórica. É esse último motivo que leva tantos de nós, cidadãos de Lilliput, a enxovalhar a vida de pessoas que deram à vida infinitamente mais do que receberam, como vemos hoje acontecer com Lula.

Mas acredito que devemos julgar as figuras históricas não pelos seus erros nem acertos, mas pelo saldo entre o que receberam da vida e o que deram a ela, entre o que cederam e o que conseguiram realizar em função disso.

Nesse cômputo geral, onde Lula é grande JK é nosso Gulliver: um gigante gentil, sorridente e paciente que desembarcou em nossa desventurada ilha por algum tempo, nos amou, nos encheu de assombro e prodígios, e depois foi embora para a terra dos mitos, nos deixando cheios de sonhos de um Brasil que não foi, mas poderia ter sido.

Por Gustavo Castañon

(Atualizado em 12/03/18 – 15h32) PS: Recebi essas informações do historiador Eduardo Migowski. Na verdade, JK teria sofrido 10 tentativas de golpe, citei aqui só a tentativa de impedir sua posse e três durante o mandato. Seriam:

1) Quando PSD e PTB se uniram em torno da candidatura de JK, a UDN tentou cancelar as eleições, porque davam a derrota como certa.

2) Tentaram impugnar a vitória de JK com o argumento de que ele não havia conseguido mais de 50% dos votos.

3) Tentaram impugnar novamente alegando que JK recebera votos dos comunistas e tais votos não seriam válidos.

4) A UDN procurou militares para impedir a posse de JK, o que levou a um golpe preventivo e à decretação do Estado de sítio.

5) Empossado, militares da aeronáutica tentaram um golpe armado em Jacareacanga. A imprensa tratou esses militares como heróis e eles acabaram anistiados.

6) Em abril de 56, tentaram instaurar o sistema parlamentarista para tirar os poderes do presidente.

7) No mesmo ano foi criado a “Ação Democrática”, movimento que pedia a queda do presidente para combater a “corrupção”.

8) Em novembro de 1956 houve mais um movimento pedindo a derrubada do presidente. Detalhe: os manifestantes, liderados por Lacerda, foram até o casa do então general Humberto de Alencar Castelo Branco.

9) Em 1958 a aeronáutica se rebela contra Lott, general legalista, que assume o controle da Força Aérea e manda prender vários brigadeiros rebeldes.

10) Por fim, o caso de Aragarças, muito semelhante a Jacareacanga.