O que explica a revolta da classe média progressista contra Kátia Abreu?

O que explica a revolta da classe média progressista contra Kátia Abreu vice de Ciro Gomes. Foto: Marcelo Camargo/Agencia Brasil
Kátia Abreu e Ciro Gomes. Foto: Marcelo Camargo/Agencia Brasil
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Por Maria Eva Angelim – O anúncio de que Kátia Abreu será candidata à vice-presidência na chapa de Ciro Gomes gerou reações fortes por parte de setores de classe média ligados a partidos progressistas. Foi alegado, contra ela, que pertence a um setor atrasado da política brasileira, o ruralismo conservador, e que por esse motivo seu nome resulta totalmente inadequado para compor uma chapa desenvolvimentista com Ciro Gomes. No entanto, as razões que motivam os protestos vão muito além das justificativas que num primeiro momento se pretende dar. No fundo, elas se relacionam com duas concepções antagônicas sobre o projeto nacional brasileiro que, em verdade, permeiam a vida política do país desde a independência.

O antagonismo de projetos nacionais pode ser entendido a partir da dicotomia entre o porto e o interior, conceito trabalhado de forma sistemática por Jorge Abelardo Ramos em História da Nação Latino-Americana[1], cujo original foi lançado em 1968, sendo uma obra fundamental da corrente política e ideológica denominada esquerda nacional ou pensamento nacional. Esse conceito, posteriormente, foi recuperado por autores como Eduardo Galeano[2], mais conhecido entre o público brasileiro. Segundo Ramos, os países da América Latina se constituíram a partir da oposição entre essas duas figuras. O porto é o lugar onde prosperou a classe ligada ao comércio marítimo, primeiro das trocas com a metrópole colonial e depois com as novas potências comerciais. Do porto, saem os produtos primários para as metrópoles, e por ele entram as manufaturas para consumo interno. Ele é a fonte de riqueza primária da nação a partir da receita alfandegária, a região que consegue tirar proveito da relação entre a exploração colonial do país e as metrópoles.

O colonialismo gerou certo movimento econômico ao redor do porto, cujos efeitos sociais beneficiaram algumas camadas da classe média local. A construção dos grandes portos gerou um maior desenvolvimento de infraestrutura urbana, com a promoção e financiamento de ferrovias, estradas, depósitos, telégrafos, edifícios públicos, alfândegas. Ao redor dessa grande corrente exportadora e importadora de produtos primários, estratificou-se uma massa de burocratas, profissionais liberais, intelectuais e comerciantes que se sustentavam a partir da atividade do comércio exterior das repúblicas latino-americanas. Ao mesmo tempo, é pelo porto que entram as ideologias e culturas das metrópoles, que, assim como os produtos manufaturados para consumo, são absorvidos acriticamente pela classe média que se sustenta e se multiplica a partir dessa dinâmica. O porto é, assim, o epicentro do combate a um desenvolvimento autônomo dos países latino-americanos. Historicamente, é a partir do porto que são constituídas as ideologias e movimentos reacionários contra os projetos políticos nacionalistas na região. Em termos atuais, o porto representa o projeto globalista, liderado pelas empresas mais dinâmicas do país, muitas delas multinacionais, e pelo capital financeiro, que se apossa da renda nacional por meio do rentismo.

Já o interior é a região do país onde a riqueza verdadeiramente é produzida, agrupando a mão-de-obra e os recursos naturais que serão exportados para a metrópole. A riqueza originada pelo interior, no entanto, é apropriada pelo porto pela via das receitas alfandegárias, sendo essa a origem da dualidade estrutural da economia latino-americana. É a região pobre, de desenvolvimento econômico e social baixíssimos, a região “atrasada”. Na realidade, não há atraso: o subdesenvolvimento do interior se deve à apropriação de recursos por parte do porto, reproduzindo uma lógica de centro-periferia que também se verifica na relação entre o Norte e o Sul globais. Ao mesmo tempo, o interior é o epicentro de manifestação do que Juan José Hernández Arregui chamaria de o ser nacional[3]. É ele que guarda a riqueza cultural e as potencialidades intelectuais de desenvolvimento da nação a partir de um movimento autônomo de emancipação cognitiva.

É do interior, portanto, que nascem e prosperam os movimentos de inspiração nacionalista na América Latina. Em muitos casos, os líderes desses movimentos são membros da elite social de suas regiões, profissionais liberais e proprietários rurais. E, de forma contraditória, foram exatamente essas figuras, tão articuladas com as elites “atrasadas” de suas regiões que promoveram o desenvolvimento de seus países. No Brasil, Getúlio Vargas é um exemplo mais claro disso. O grande estadista brasileiro articulou as elites agrárias do Sul, do Nordeste e posteriormente de Minas contra os interesses de São Paulo, e assim iniciou o processo de modernização da nação.

É comum que não só a direita, mas a esquerda do porto aja constantemente contra os interesses nacionais. Em 1932, a esquerda liberal de São Paulo respondeu ao chamado da oligarquia paulista para se levantar contra o projeto nacional. Eles foram atraídos por um discurso “antiautoritário” que foi efetivado no chamado pela autodenominada Revolução Constituinte, mas na realidade, serviam à oligarquia paulista em seu plano de retomar o poder. Derrotada em 1932, a oligarquia paulista percebeu que havia perdido a hegemonia política e ideológica do país e por isso criou a Universidade de São Paulo (USP), em 1934. A USP e posteriormente o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), de forte inspiração marxista, interpretou a Era Vargas a partir da negatividade, sobretudo após a década de 1960. Ressaltou-se a “manipulação”, a “demagogia” e o “autoritarismo” dos governos, mesmo quando se reconhecia o atendimento (de cima para baixo, de qualquer forma) destes às demandas populares legítimas através das profundas reformas estruturais defendidas (e muitas delas realizadas) pelos governos trabalhistas.

O trabalhismo, projeto político liderado inicialmente por Vargas e voltado à valorização do trabalho e do trabalhador, foi descaracterizado pela Academia paulista como “populismo”, tendo negado seu caráter popular, reformista e democrático e sendo equiparado a correntes políticas muito distintas, como o ademarismo e o janismo. No entanto, desde que o PT (partido paulista que propunha renovar as lutas dos trabalhadores em oposição ao trabalhismo) assumiu a presidência, e em particular desde o mensalão, quando Lula emerge como a figura central do partido, a práxis política deu origem ao fenômeno do lulismo. Essa força iniciava um processo de desenvolvimento produtivo e social do interior do país, em aliança com as elites locais, como não poderia deixar de ser. Em 2013, a esquerda moderna e cosmopolita do Sudeste mais uma vez se insurgiu contra essa movimentação. A aliança política de apoio ao lulismo foi constantemente criticada por essas classes médias urbanas progressistas como o grande motivo da falência dessa vertente, enquanto na realidade este pacto político era o que movia seu potencial transformador, mesmo sendo ele engessado pela leitura liberal de mundo de matriz uspiana que fundamenta o projeto petista.

No atual momento, o Brasil se encontra de novo sob o comando do porto, isto é, de São Paulo. Trata-se da coroação de um longo processo de subjugação do país pela política da elite paulista, iniciado no golpe de 1964 e consolidado a partir do projeto neoliberal implantado com a redemocratização. PSDB e PT, ambos surgidos em São Paulo no contexto da redemocratização, afirmaram-se como opositores ao legado varguista e desdenharam o nacionalismo, tanto pelo lado do capital financeiro voltado para fora (PSDB) quanto do trabalho sindicalizado, muitas vezes em empresas multinacionais (PT).

Desde a consolidação do projeto neoliberal na década de 1990, que significou a inserção dependente do Brasil na dita globalização (a partir do porto, onde se concentram as multinacionais e de onde o poder das finanças direciona a política nacional), ambos os partidos se tornaram as principais forças eleitorais do país, refletindo no plano institucional a hegemonia econômica e ideológica da elite paulista enquanto centro do capitalismo subdesenvolvido e foco de atuação do capital estrangeiro no país. Não só não conseguiram romper com o sistema neoliberal imposto de fora do país, como foram seus administradores, apesar do ensaio desenvolvimentista em Lula II e Dilma I, dentro dos limites do liberalismo de esquerda representado pelo ideário petista. A legitimidade da polarização entre PT e PSDB dependeu, em grande medida, da estabilidade da globalização, e quando hoje essa é contestada e minada nos centros capitalistas (vide o Brexit e a eleição de Trump), surgem forças opostas a essa dicotomia, tanto à direita quanto à esquerda.

Há de se considerar também que, após esse processo incipiente de desenvolvimento, o interior ganhou força, e tentou se rebelar mais uma vez contra a dominação do porto. Ciro Gomes, um político cearense, tentou articular o centrão, que representa justamente a direita do interior, mas foi espremido pelas duas pinças que vêm de São Paulo, PT e PSDB. Tentou também realizar uma aliança entre a esquerda do interior, representada por PSB e PCdoB, fortes no Nordeste. O que sob a ótica política do Sudeste é fisiologismo e incoerência, sob a ótica política do pensamento nacional é completamente lógico e necessário: uma articulação dos políticos de esquerda e direita locais para salvar suas regiões da miséria absoluta. É importante notar também que todos os governadores petistas do Nordeste manifestaram apoio público a uma chapa com Ciro, por entender justamente que o candidato teria maior capacidade de unificar a região do que as alternativas petistas. O poder do porto, entretanto, foi forte demais, e as iniciativas de união regional acabaram fracassando.

A força fragmentadora vinha diretamente da burocracia paulista do PT, que depende do direcionamento do voto nordestino para empreender seu projeto social-liberal. Esta mesma burocracia com seu braço militante, a classe média urbana progressista do porto, que do alto de sua moralidade vive em meio ao luxo em cima da exploração do interior, vem mais uma vez atacar Ciro e sua companheira de chapa Kátia Abreu. Dois políticos de origens sociais e ideológicas distintas, mas com uma mesma preocupação: romper o jugo da elite paulista e modernizar suas regiões, industrializando a nação e superando a dualidade estrutural que domina a economia brasileira desde a independência.

A ex-senadora pelo Tocantins era uma liderança ascendente do agronegócio brasileiro, de um estado do Brasil profundo, o Tocantins, que foi presidente da CNA, uma associação que buscava organizar os produtores rurais em marcos diferentes da antiga UDR. Ao invés de representar apenas os latifundiários rentistas, a CNA se propunha também a representar produtores rurais pequenos e médios. Ao invés de se firmar em posições puramente reacionárias, a CNA propunha apresentar soluções mais consensuais, representando um agronegócio mais moderno e produtivo do Norte e Centro-Oeste. Atenção, não se pode ter ilusões: trata-se ainda de um sindicato patronal, e que traz em si todas as duras contradições e conflitos do campo brasileiro. No entanto, as diferenças em relação à organização anterior são significativas.

Será que a classe média urbana progressista imagina que Kátia Abreu foi autora da lei que cria uma política de investimento para a agroindústria familiar? Será que esta mesma classe tão iluminada, e tão ignorante do próprio país, imagina que Kátia Abreu, em sua gestão no Ministério da Agricultura, atuava fortemente contra a empresa JBS? Por quê? Ora, porque a JBS é um grupo sediado em São Paulo, que exterminou a concorrência dos frigoríficos locais no interior do país. Kátia Abreu, uma política do Tocantins, queria que os frigoríficos (que é bom dizer, são uma forma de adicionar valor agregado) voltassem para os estados produtores, dentre os quais o seu. Ou seja, que a fronteira agrícola parasse de exportar gado vivo para São Paulo, e passasse a exportar a carne embalada, produto semi-industrial, o que representaria mais riquezas, recursos do ICMS e empregos para o seu estado. Em resumo, que a dinâmica de apropriação da receita se voltasse para o benefício do interior.

Com o ataque a Ciro, ameaçam entregar o país nas mãos de Alckmin, um político paulista à moda da República Velha. Porém, do mesmo modo que não há contradição numa aliança entre Ciro e Kátia, também não há nenhuma contradição nessa entrega do poder ao PSDB de São Paulo. É mais importante manter o poder do país nas mãos do porto do que arriscar um levante do interior. Para isso, continuarão usando de sua ideologia oficial, o liberalismo de esquerda, que destruiu a imagem de Getúlio e do trabalhismo, e que constituiu uma inspiração ideológica significativa no momento de criação do PT e de todos os seus filhotes na esquerda. Resta saber se o projeto de desenvolvimento autônomo e soberano do interior terá forças para se levantar, ou se será subjugado pelo projeto de inserção internacional dependente do Brasil representado pelo porto.

Por Maria Eva Angelim

Referências

Referências
1 RAMOS, Jorge Abelardo. História da Nação Latino-Americana.  Florianópolis: Editora Insular, 2014. Disponível em: <http://jorgeabelardoramos.com/libros/51/Jorge%20Abelardo%20Ramos%20-%20Historia%20de%20la%20Nacion%20Latinoamericana.pdf> (Consulta realizada em 08/08/2018).
2 GALEANO, Eduardo. As Veias Abertas da América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
3 HERNÁNDEZ ARREGUI, Juan José. ¿Qué es el ser nacional? Buenos Aires: Peña Lillo-Ediciones Continente, 2009.