O livro de Ciro Gomes: uma avaliação

Na última parte do livro Ciro Gomes se dedica a uma corajosa crítica solidária e construtiva às práticas da esquerda, tanto no mundo, quanto no Brasil. Ciro se define ideologicamente e se alinha resolutamente à corrente de ideias do trabalhismo histórico, compreendida como “o caminho brasileiro” para o desenvolvimento com justiça social.
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À Alfredo Sirkis, in memoriam

I

Uma das carências centrais do debate político no Brasil nas últimas décadas é a ausência da construção de cenários para o futuro do país, que confronte democraticamente diferentes visões de mundo, socialmente condicionadas. Que tremenda falta faz um projeto de país, isto é, um plano articulado de propostas, conjugando meios e fins, capaz de conduzir a retomada do crescimento econômico sustentado e promover as mudanças necessárias para tal. Que mudanças são precisas, e urgentes, poucos negam. Afinal, já acumulamos praticamente quarenta anos de estagnação, período no qual o país não conseguiu manter sequer os frágeis impulsos econômicos registrados em certos anos desse lapso de tempo, que se revelaram, assim, efêmeros, incapazes de reverter a tendência de longo prazo de paralisia, defasagem tecnológica e retrocessos sociais.

E, mesmo nessas irregulares ocasiões de retomada, qual foi um dos motivos principais pelos quais o Brasil não logrou consolidá-las, ou delas retirar os insumos requeridos para nutrir ações de reformas estruturais e institucionais? Pois arriscamos com segurança a responder que uma das principais razões para tal (senão a principal) foi precisamente a falta de um projeto consistente capaz de fixar objetivos e balizar caminhos para atingi-los. Constatação que não invalida o fato de que inúmeros diagnósticos e proposituras tivessem sido produzidos, mas sem que fossem política e institucionalmente incorporados na prática de partidos, lideranças e governos.

Só por esse motivo – o de trazer ao debate uma intenção de tamanha atualidade – o livro de Ciro Gomes, Projeto Nacional: o Dever da Esperança (São Paulo, Editora LeYa, 2020), já mereceria reconhecimento. Porém, ademais, a obra possui méritos intrínsecos, pela consistência da proposta e das reflexões nela contidas. Tendo como principal motivação da obra a dificílima tarefa (mas não menos importante e urgente) de “construir um novo diálogo e um novo consenso” (p. 28), o livro se estrutura basicamente em quatro seções distintas: na primeira o autor faz um breve diagnóstico da crise econômica, das vias que levaram ao impeachment de Dilma Rousseff em 2016, e da continuidade da retração sob o governo de Michel Temer e no primeiro ano de Jair Bolsonaro. Em seguida, Ciro analisa o novo contexto geopolítico no mundo e a “falência da proposta neoliberal”. Na terceira parte, o projeto nacional defendido pelo autor é justificado e decomposto nos seus elementos componentes, junto com uma nova agenda de reformas que possa sustentar um projeto soberano de país. Por fim, uma oportuna – embora sempre incompleta, por definição – avaliação dos impasses da esquerda, no Brasil e no mundo.

O espaço aqui não se presta a esmiuçar detalhes da proposta ou decupar as diversas nuances da crítica de Ciro Gomes à esquerda. Mesmo porque o objetivo é estimular a leitura do original. Propomo-nos a destacar os principais aspectos da reflexão de Ciro Gomes, sem pretensão de esgotar os diferentes matizes que o livro evoca.

II

O diagnóstico de Ciro recupera, em linhas gerais, a trajetória da industrialização brasileira a partir de Getúlio Vargas (1930/40), passando pelo Plano de Metas de Juscelino Kubitschek (1956-59), até chegar ao regime militar, em cujo âmbito se verificaram desempenhos importantes de nossa economia no período do “milagre econômico” (1968-73) e no II Plano Nacional de Desenvolvimento-PND (1974-79). Depois de 1980 o impulso do crescimento e da transformação estrutural da economia brasileira – capaz de registrar um dinamismo sem igual no mundo ao longo desses quase cinquenta anos – estancou, mergulhado na crise da dívida externa e nas subsequentes políticas de austeridade, sob a égide do pensamento neoliberal, do qual não nos desvencilhamos até os dias de hoje[1].

Nessa última etapa houve algumas vitórias – como a redemocratização e o êxito no combate à inflação -, mas uma sucessão de fracassos: entre eles, a defasagem tecnológica, a desindustrialização, o predomínio do finanças e o insuficiente avanço (de 2016 para cá, retrocesso!) na luta contra a pobreza e os déficits sociais históricos. Nesse meio tempo, tivemos pouco mais de 13 anos de governo do Partido dos Trabalhadores-PT, cuja gestão – mandatos que Ciro Gomes apoiou e participou de uma das composições ministeriais no governo de Luís Inácio Lula da Silva – se destacou por ações setoriais e políticas distributivas. Isso deve ser reconhecido e a população o fez, reconduzindo por três vezes sucessivas o PT ao poder.

Contudo, ao longo desse período, nenhuma reforma estrutural foi seriamente empreendida – portanto, nenhuma mudança de fundo foi viabilizada – e o anacrônico arcabouço institucional brasileiro permaneceu intacto. O jogo do “ganha-ganha” permitiu a acomodação de classes enquanto a situação (externa, sobretudo) se manteve favorável, e os recursos públicos podiam ser alocados entre programas compensatórios (minoritariamente) e para a cobertura (amplamente majoritária) do serviço da dívida interna, privilegiando os setores rentistas com os juros reais mais altos do mundo. O resto da história é conhecido demais: com a reversão do quadro (as consequências da crise externa de 2008 só se fizeram sentir com força no Brasil dois anos mais tarde), junto com erros na condução econômica, graves estigmas morais e uma gestão política bastante problemática, a elite brasileira mudou rapidamente de postura e decidiu alijar de vez seus incômodos “aliados”, primeiramente da sala de vistas do palácio para a cozinha, e da cozinha para o olho da rua (e para a cadeia…). Um golpe travestido em ações meticulosamente conduzidas dentro da mais estrita “ordem” institucional e da formalidade processual. Tudo isso é narrado por Ciro Gomes, sem riqueza de detalhes, mas abrangendo, em sua análise, o conjunto dos fatores desencadeadores da crise.
A tumultuada eleição de 2018 marcou o distanciamento radical de Ciro em face da estratégia da liderança do PT, pois esta, de acordo com o autor, encampou o jogo da direita: “manter a esquerda dividida e atrair o centro, trazer a eleição para questões comportamentais e paixões ideológicas e evitar a todo o custo que o país discutisse em profundidade sua situação e os resultados do Governo Temer, menos ainda propostas para sair dela” (p. 81).

Teríamos aqui a observar apenas que parte significativa da população (os eleitores de Bolsonaro ou de qualquer um que mostrasse firmeza e viabilidade eleitoral com a plataforma antipetista) chancelou “entusiasticamente” essa estratégia. Tal comportamento, eivado de conservadorismo e interdições “ideológicas” (de direita) problematizava tremendamente, naquelas circunstâncias, a possibilidade de efetivar, nas palavras de Ciro, uma “campanha responsável”, capaz de, por meio de “um debate racional e propositivo”, redundar em um “projeto discutido pela sociedade e legitimado por ela” (p. 80), apto para fazer o país sair da crise. Em outras palavras, mesmo que a leitura de Ciro esteja, no nosso entender, fundamentalmente correta, as cartas já estavam marcadas e o resultado dificilmente poderia ser revertido, no paroxismo das paixões irreconciliáveis do momento. E mais: pensamos que o PT pagou, e vai continuar pagando muito caro pelos erros cometidos (reais, por um lado, e supostos ou fabricados, por outro). Constatamos isso com pesar, pois os custos recaem não apenas em valorosos quadros e militantes do PT, bem como sobre o conjunto das forças progressistas.

III

Na sequência, Ciro Gomes discorre acerca do fracasso do programa neoliberal e os resultados desastrosos que postulados dessa natureza – em descrédito nos círculos acadêmicos, agências multilaterais e governos de países desenvolvidos, mas “revigorados” pelo atual governo brasileiro – acarretam para nações como o Brasil. Abdicarmos de políticas ativas de desenvolvimento e de inserção soberana na ordem global é sacrificar o futuro das novas gerações. O desequilíbrio de nosso país em itens chave da competitividade, como o custo de capital, a tecnologia e a escala, requer estratégias consistentes, promovidas e coordenadas pelo Estado nacional, para reverter esse quadro e ajudar nossa indústria e serviços a galgar patamares mais elevados de eficiência e produtividade. “A nós só interessa uma via própria” (p. 99), enfatiza, e para delinear o caminho proposto o autor dedica a parte mais importante da obra.

A seção “Um projeto para o Brasil” começa por identificar algumas premissas básicas para o desenvolvimento da nações. São elas: a) alto nível de formação bruta de capital; b) coordenação estratégica governo-empresariado-academia, e c) investimento em gente. Em seguida, passa a detalhar “o Brasil que queremos”, esclarecendo previamente que “por desenvolvimento entendemos o aumento tanto da riqueza produzida por um país como das capacidades e habilidades de seu povo, suas condições de vida e felicidade” (p. 106). Para tanto se requer quatro linhas de ação imediatas para a ativação do crescimento econômico: 1) recuperar o consumo das famílias; 2) consolidar o passivo privado; 3) sanear as finanças públicas, e 4) superar o desequilíbrio externo.

No tocante ao projeto nacional propriamente dito, Ciro Gomes destaca um conjunto de metas (não quantificadas) relacionadas à recuperação do Estado, reforma tributária, reindustrialização, revolução educacional e agregação de valor ao produto rural. Como se percebe, o projeto busca superar os gargalos antepostos ao crescimento sustentado do país, quais sejam, a desindustrialização, a reprimarização de nossa pauta exportadora, o atraso educacional e o sucateamento do setor público. Destaque especial à nova política industrial, pois somente a indústria tem a capacidade de prover rendimentos de escala, gerar efeitos multiplicadores, estimular inovações e propiciar aumentos da produtividade e do salário real. Ciro prioriza quatro áreas no novo ciclo de desenvolvimento industrial: os complexos industriais de petróleo, gás e bioenergia, da saúde (cuja importância é reforçada pela pandemia da COVID-19), do agronegócio e da defesa, fundadas no suporte estatal consistente às políticas científica e tecnológica e educacional. Por fim, um conjunto de ações busca reverter a herança nefasta dos governos Temer e Bolsonaro no campo fiscal (o limite de gastos) e trabalhista, e criar uma nova agenda de reformas políticas, na saúde (defesa e aprimoramento do Sistema Único de Saúde-SUS) e na segurança pública. O detalhamento e as justificativas estão em sintonia com o alcance das medidas preconizadas, embora, em algumas situações, sentimos falta do exercício da construção de cenários com dados e cifras que os embasassem. Nada muito carregado, mas seria útil para dar mais concretude ás propostas.

IV

Na última parte do livro Ciro Gomes se dedica a uma corajosa crítica solidária e construtiva às práticas da esquerda, tanto no mundo, quanto no Brasil. Ciro se define ideologicamente e se alinha resolutamente à corrente de ideias do trabalhismo histórico, compreendida como “o caminho brasileiro” para o desenvolvimento com justiça social. Pela amplitude e caráter altamente controverso do tema, deixamos ao leitor se aventurar por si próprio e dialogar com as reflexões do autor. Podemos adiantar que são corajosas e necessárias. Encarando os problemas de frente e propondo alternativas democráticas para seu equacionamento. Só assim podemos crescer.

Por fim, retomamos a linha de pensamento que abriu este artigo. Um dos aspectos mais pobres de nossa realidade política e intelectual das últimas décadas foi a escassez de programas, propostas, planos, políticas consistentes e politicamente respaldadas de pensamento sobre o país. É a isso que Ciro Gomes se propõe e seu esforço é recompensado. Está em linha com abordagens contemporâneas da new developmentalist agenda[2] – que agrega dimensões humanistas, políticas, tecnológicas e ambientais às abordagens clássicas da teoria do desenvolvimento -, do novo-desenvolvimentismo brasileiro[3] – com suas preocupações fiscais e cambiais – e das novas abordagens do papel do Estado, expressas entre outras nos trabalhos de Mazzucato[4].

Recupera uma tradição tão viva nos ricos debates sobre os rumos do país nos já distantes anos 1960. Reaviva o nacionalismo. Aliás, é justo registrar que os velhos partidos comunistas, apesar de seus vícios e malogros, sempre tiveram uma estratégia em mente e municiaram seus quadros com formação e propósitos do que fazer e como alcançar. Os PCs se foram e a esquerda mundial abandonou a tão importante tarefa do combate pela hegemonia das ideias (“sem teoria revolucionária não há prática revolucionária”, dizia um antigo líder soviético – perdão pelo anátema!).

No Brasil, a última vez que se elaborou um projeto nacional digno desse nome foi em 1982, com o “Esperança e Mudança”, do Partido do Movimento Democrático Brasileiro-PMDB, documento que fertilizou as lutas pela redemocratização do país à época. Desde então, um deserto de ideias. Ciro vem romper com essa carência. Pois “o Brasil não precisa de salvadores ou mitos, mas de projeto” (p. 256), capaz de convergir a inteligência nacional, o mercado e o governo para essa plataforma de consenso básico. Afinal, nas certeiras palavras de Mangabeira Unger na introdução da obra, “o método dos progressistas é a reconstrução das instituições e das consciências”.

Na última parte do livro Ciro Gomes se dedica a uma corajosa crítica solidária e construtiva às práticas da esquerda, tanto no mundo, quanto no Brasil. Ciro se define ideologicamente e se alinha resolutamente à corrente de ideias do trabalhismo histórico, compreendida como “o caminho brasileiro” para o desenvolvimento com justiça social.

Por Ricardo Carlos Gaspar, Professor Doutor do Departamento de Economia da PUC-SP e pesquisador do Observatório das Metrópoles/SP. Ocupou vários cargos públicos. No mais recente, foi Assessor Especial da Secretaria do Governo Municipal da Prefeitura de São Paulo, gestão Fernando Haddad (PT), entre 2013 e 2016.

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Referências

Referências
1 “Atualmente, o discurso econômico é o principal gestor de nossa melancolia social” (SAFATLE, V. Só mais um esforço. São Paulo, Três Estrelas, 2017, p. 124).
2 Conforme, por exemplo, CHANG, H. J. Hamlet without the Prince of Denmark: how development has disappeared from today’s ‘development’ discourse. In: Khan, S. & Christiansen, J. (eds.). Towards new developmentalism: market as means rather than master. Abingdon, Routledge, 2010. Disponível numa versão preliminar em: https://www.sussex.ac.uk/webteam/gateway/file.php?name=chang-hamletwithouttheprinceofdenmark.pdf&site=25
3 Consultar, entre outros, BRESSER PEREIRA, L. C. Teoria novo-desenvolvimentista : uma síntese.  Cadernos do Desenvolvimento, Rio de Janeiro, v. 11, n. 19, jul.-dez. 2016. Disponível em:
file:///C:/Users/Ibm%20T60/Downloads/artigo%20Bresser%20Pereira.pdf
4 MAZZUCATO, M. O estado empreendedor: desmascarando o mito do setor público x setor privado. São Paulo, Portfolio-Penguin, 2014. Conceitos e argumentação estão melhor elaborados em seu livro mais recente: The value of everything: making and taking in the global economy. New York, PublicAffairs, 2018.