CHRISTIAN LYNCH: O vídeo da reunião presidencial

CHRISTIAN LYNCH O vídeo da reunião presidencial bolsonaro presidente moro
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A essa altura, já dá para ter uma impressão geral do vídeo e tirar algumas conclusões objetivas, sem o vomitório indignado.

1. IDEOLOGIA CONSERVADORA RADICAL DO PRESIDENTE BOLSONARO. O governo é de direita radical, e o presidente é convicto em seu projeto, não aceitará “moderação” de general nenhum. Essa história de que os militares moderariam o atual governo federal, ou fracassou, ou nunca passou de autoengano. Só funciona taticamente, nos raros intervalos de fúria populista radical do chefe do Estado. Como outros representantes do populismo radical de direita, Bolsonaro toma a parte do eleitorado que nele votou como sendo o todo, o “autêntico” povo brasileiro, cujo arquétipo seria a de uma família de um caminhoneiro goiano, branco e evangélico. Do ponto de vista da inspiração política, o que de mais próximo houve na história brasileira desse ideário foi o integralismo, o fascismo brasileiro da década de 1930, cuja inspiração era, como se verá mais abaixo, uma visão idílica do “Brasil profundo” como religioso, rural, agrário, patriarcal, autoritário. Emissário da vontade providencial do povo, que se confunde com a divina, ele acredita ter vindo ao mundo e chegou ao poder para restaurar a velha e boa ordem de coisas, simbolizado em uma leitura idealizada do regime militar (cujo fundo real, porém, é bem mais antigo), contra toda a política progressista identificada com a Nova República.

2. O RETORNO AO ESTADO DE NATUREZA COMO PROJETO POLÍTICO. AFINIDADE COM O NEOLIBERALISMO RADICAL. O projeto de Bolsonaro, como tenho repetido aqui, é a utopia regressiva de retorno à sociedade colonial do século 17, pré-iluminista, com milícias armadas religiosas, chefiadas por chefes de família patriarcais e ausência de Estado regulador ou protetor das minorias. Estado de natureza hobbesiano, antiliberal e antirrepublicano. Aqui há que se entender o que significam para o seu grupo os conceitos de “civilização” e de “liberdade”. A “civilização judaico-crista ocidental” defendida nesse projeto não tem nada a ver com o que se entende desde o século 18 por “civilização”. Ela é, repito, antiiluminista e antirrenascentista. Seu conceito de “liberalismo”, por conseguinte, não tem nada de politicamente liberal. É uma liberdade de estado de natureza hobbesiano, pré-Estado, baseada numa visão idealizado da idade média. Por conseguinte, tudo o que é especificamente moderno – pluralismo, tolerância, Estado de direito, laicidade, imprensa – é rechaçado enfaticamente. Pandemia? Vírus é coisa de frouxo, porque a morte faz parte da vida, e neste mundo, os fracos não têm vez. Daí a afinidade desse projeto de “civilização” medievalista com o projeto neoliberal radical de Paulo Guedes: bandeirantismo selvagem e darwinismo social estão um para o outro assim como o avô está para o neto. O Salles quer mesmo tocar fogo na Amazônia, o outro, Marcelo, quer cassinos etc. Por isso a pandemia não é tratada como catástrofe social. Ela é apenas um inconveniente, explorado pelos inimigos eleitorais do governo, e que pode ser aproveitado para iludir as instituições da república e à imprensa. Enfim, um acidente de percurso explorado pelos inimigos na “guerra” mantida entre o “povo”, representado por Bolsonaro, e o “comunismo”, isto é, a república.

3. INCOMPATIBILIDADE DO PROJETO POLÍTICO DE BOLSONARO COM A REPÚBLICA DE 1988. Bolsonaro tem o projeto dele, que é o de retornar 50 anos (na verdade, 300) em 4 ou 8. Esse projeto colide frontalmente, por óbvio, com Constituição de 1988, moldura jurídica e ideológica da Nova República. A Constituição para ele não existe, é um amontoado de palavras que nada valem, porque não passa de um breviário comunista ou subversivo. As instituições só podem existir, desde que não contrariem o governo. Especialmente as que tentarem exercer suas funções de controle, ou freios e contrapesos. Contrariedade do Estado de direito é sinônimo de sabotagem da vontade popular identificada na sua pessoa. Então o livre funcionamento das instituições de controle não é tolerado; há uma percepção de que são também inimigas ou subversivas. E ele tem razão: seu projeto é inconstitucional de ponta a ponta. Por isso, acuado pelo Estado de direito, seu discurso é de guerra permanente, e ele se comporta como se fosse um John Wayne acuado, cercado de índios comunistas, em um bangue bangue da década de 1950. Paranoico, confessa que tem um serviço de segurança informacional paralelo, formado por policiais militares admiradores seus em diversos estados! Então, Bolsonaro não se submete aos mecanismos de controle previstos na Constituição, ou às doutrinas constitucionais da Suprema Corte, e no cotidiano adota medidas inconstitucionais diuturnamente. Para prevenir nas narrativas a pecha de que estaria subvertendo o Estado democrático, inventa outra interpretação do que seja democracia, ou Estado de direito. Bolsonaro afirma ser ele a Constituição, conforme defendeu outro dia, na condição de chefe supremo das Forças Armadas.

4. O ASSANHAMENTO DA ALA REACIONÁRIA. O núcleo ideológico, que encontra sua fonte intelectual mais elevada na visão de mundo difundida por Olavo de Carvalho – o mais temível inimigo intelectual da Nova República – é fidelíssimo ao projeto bolsonarista, e está lá de todo o coração. Bolsonaro e Olavo, cada qual à sua maneira, foram inimigos declarados do regime liberal democrático de 1988 desde a sua fundação, e com coerência de fio a pavio. Aqueles que os seguem no vídeo não são meros fariseus, ainda que oscilem entre o mesmo radicalismo da Dalmares e o servilismo abjeto de Weintraub. O Araújo acredita que o populismo radical de direita levará a uma nova ordem mundial que reeditará a “república cristã” universal da Idade Media, em cruzadas contra os novos mouros (os chineses). Então, é preciso dar a mão à palmatória, e reconhecer que o Bolsonaro e essa gente são carnes de pescoço, convicta de que são cruzados em uma nova guerra santa. Para os 15% do eleitorado que o apoia até sob tortura, o vídeo da reunião será visto como o “Triunfo da Vontade” da Chapada dos Veadeiros. Vão adorar. E você aí achando que os lulistas eram o máximo em matéria de radicalismo!

5. A DERROTA DA ALA LIBERAL JUDICIARISTA. A tentativa de interferência na polícia federal é óbvia, e Moro está constrangido todo o tempo. Quando o presidente dá o primeiro chilique sobre a tal desinformação, ele se vira à esquerda e fuzila o Moro com o olhar. No vídeo não dá pra ver, mas é o ex-ministro que está sentado ao lado do Mourão. Ali Moro está vencido. Demorou mais de um ano, mas ali o chefe dos tenentes togados já se deu conta do tremendo erro que cometeu ao alinhar o lavajatismo ao reacionarismo autoritário do presidente, que aspira a devorar a autonomia de todas as instituições que ele ainda não controla. O judiciarismo liberal republicano representado por Moro não pode existir no mundo bárbaro dos bandeirantes do século 17 – ou, para usar uma metáfora mais popular, no Velho Oeste. O judiciarismo só pode existir num Estado de direito altamente desenvolvido, e no século 17, nem Estado existia ainda, quanto mais de direito. O judiciarismo lavajatista aderindo ao bolsonarismo foi a galinha entregando os ovos para a raposa vigiar.

6. AS CONTRADIÇÕES DA ALA MILITAR. O “armamentismo” miliciano do Bolsonaro, com sua liberdade do século 17, para o homem branco poder matar, destruir, dominar mulheres, crianças, índios e negros, resistindo à autoridade do Estado moderno -verdadeiro estado de natureza hobbesiano – é absolutamente CONTRÁRIO aos interesses mais essenciais do Exército como espinha dorsal do Estado moderno e na manutenção da ordem nacional. Nesse projeto, o regime militar entra como fantasia de um Estado que só interviria para MANTER o estado de natureza, o que é completamente contraditório com o propósito de existência das Forças Armadas. O exército que se cuide apoiando esses reacionários, que só querem “desordem” e “regresso”. É um casamento tenso, esticado pelos moralistas e fascistas dentro do Exército (os novos “lacerdistas”), mas que possivelmente não poderá durar.

CONCLUSÕES:

O que resulta de tudo isso, é a sensação de que, em condições normais, essa situação de impasse tenderia a se estender indefinidamente. O presidente se sente sitiado pelo Estado de direito, pelas instituições, pela Constituição. Com razão. Esse regime não tem nada a ver com ele. Mas ele não tem força para desfazê-lo. Por outro lado, o livre funcionamento das instituições, que defendem a Constituição, a república e o Estado de direito, fatalmente afetará o governo, que é todo inconstitucional de cabo a rabo. Mas Bolsonaro não aceita processos de impeachment ou notícias crimes, porque acredita que as regras do jogo constitucional não se aplicam a ele. Daí o recurso à intimidação pela ameaça de golpes etc. Então se estabeleceu um impasse, marcado por um grau de equilíbrio instável e de tensão permanente. Essa situação não estava fora do plano eleitoral dos Bolsonaro, que sempre viveram de explorar o ódio antissistêmico. Caso não conseguissem destruir o sistema, sempre poderiam pedir mais quatro anos em 2022 para continuar a “limpeza” contra seus inimigos… O drama dos Bolsonaro é que a pandemia, com suas consequências catastróficas, contrariou seus planos. Em sua visão de mundo, que funde ideais medievais com faroeste, epidemia é algo que se resolve deixando morrer. Mas essa é uma concepção inadmissível para a maioria do país. A polarização como discurso perdeu sua eficácia retórica para uma concepção de nação como conjunto de todos os brasileiros.

Então, abriu-se uma janela de oportunidade para desatar o nó do impasse. A queda de popularidade do governo de um lado e o fortalecimento das instituições da república poderiam, já no segundo semestre de 2020, culminar na deposição de Bolsonaro, sem forças para resistir ao castigo decorrente de todo o seu desprezo pela Constituição, violada conscientemente desde o início de seu mandato. E aí a luz vermelha acendeu. E o que o vídeo mostra, é um governo ciente de que teme estar a perder a tal “guerra” contra a república. Aconselhado pelos radicais, Bolsonaro aposta no remédio de sempre: redobrar a aposta no radicalismo, na guerra. Mas vejam só. Na reunião, um mês atrás, o ponto central é justamente sua reclamação incessante de que a maioria dos ministros está fazendo corpo mole, não querendo acompanha-lo na estratégia do negacionismo radical. Grande oportunidade para os puxa-sacos e radicais(Guedes, Salles, Weintraub, Dalmares) reafirmarem, contra os moderados, os costumeiros protestos de obediência e lealdade incondicionais. Isso tudo indica, no fundo, os limites de seu projeto radical dentro de seu próprio governo. Bolsonaro sabe que a crise sanitária e econômica pode realmente afunda-lo, levando a uma debandada geral. E sua situação só piorou de lá pra cá, obrigando-o a ir à zona do baixo meretrício político, comprar um punhado de deputados do Centrão. Que são conhecidos por serem bastante volúveis, para usar um eufemismo…

PS: O general Mourão entrou mudo e saiu calado na reunião. Parece jogar palavras cruzadas, sugerindo tédio ou ironia o tempo todo, como em todas as outras aparições públicas com Bolsonaro. Agindo como uma esfinge, à maneira do marechal Floriano, pode ser interpretado como concordando com tudo ou com nada. Para bom entendedor…

Por Christian Edward Cyril Lynch

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