Manuela, entre o identitarismo e o nacionalismo

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Desde que o imobilismo político foi posto em xeque na sociedade brasileira, em 2013, o debate público tem girado em torno de dois valores básicos: de um lado, o moralismo, e de outro o identitarismo.

A sensação de esterilidade que abala o brasileiro comum, por sua vez, está possivelmente atrelada ao fato de que cada um desses valores está vinculado a premissas totalmente falsas. Daí surge a insegurança e a falta de esperança que se enraízam na vida cotidiana do país.

MORALISMO

O moralismo é a forma que tem assumido o discurso de “salvação da pátria” quando há qualquer crise de consenso na sociedade. Diante dos primeiros sinais de impasse, certos setores levantam-se com ares de indignação afirmando serem os portadores da ética, da razão,  e desvinculados da “sujeira que aí está”.

De todo modo, não há conteúdo transformador no moralismo, que não propõem absolutamente nada além da já estabelecida dicotomia entre a predominância do mercado ou um mercado humanizado. Nem se pode vislumbrar qualquer espécie de ideia de futuro para o país. O que existe é apenas uma fictícia superioridade ética.

Não é preciso ir longe para ver o resultado. Collor postulava-se como o “caçador de marajás”, sabemos onde isso acabou. Aécio colocava-se de forma semelhante nas eleições de 2014. A Eduardo Cunha, cinicamente, foi concedido o privilégio de conduzir o Impeachment de Dilma Roussef em prol de uma moral maior (tirar o PT). Quem não se lembra dos manifestantes vestidos de amarelo que gritavam orgulhosamente “somos todos Cunha”?

Ainda sendo cogitado, Luciano Huck parece estar no limiar de exercer a mesma conduta, mas quem ocupa o centro do moralismo hoje é outro personagem. Atualmente, é o Poder Judiciário que cumpre esse papel.

Através do ideológico discurso de que as “instituições estão funcionando”, a “Justiça” brasileira atua como uma potente corporação que se ergue sobre uma montanha de privilégios obscenos: auxílio-moradia para juízes que já possuem imóveis próprios e rendimentos astronomicamente acima do teto salarial da categoria são apenas a ponta do iceberg.

O moralismo como força política tem funcionado, resumidamente, apenas como um redistribuidor de vantagens.

IDENTITARISMO

O identitarismo é um fenômeno ideológico muito mais delicado, mas igualmente perigoso. Funciona como um discurso ilusoriamente inclusivo, que busca dar sentido a certas demandas históricas associadas a agrupamentos sociais, mas  gera fissuras complicadas de remendar.

As identidades (como ser negro, mulher, homossexual, judeu, oriental etc.) operam transportando os indivíduos aos seus grupos identitários, ou verdadeiras bolhas, cujas demandas certamente são legítimas, mas onde a maneira de corrigir historicamente as opressões sofridas é excluindo a voz daqueles com os quais não se identificam. Para isso existe inclusive o conceito de “lugar de fala”. Trata-se, portanto, de uma pretensa superação do individualismo, de modo falsamente totalizante, que serve apenas para fracionar mais a sociedade.

Não à toa, e paradoxalmente, logo que as tribos se solidificam, reafirmam-se os seus avessos. Grupos que jamais sofreram qualquer tipo de desvantagem social associada a sua natureza também passam a reivindicar o próprio lugar de fala: brancos, heterossexuais, homofóbicos, “homens de bem”, carnívoros ou o que quer que sejam.

Entre um pólo e outro dessa zona de mútua exclusão, não há diálogo. Não há cruzamento possível entre seus lugares de fala, e a identidade de um povo assim se desfaz. Diversos atores políticos brasileiros encontram-se emaranhados na rede identitária. Em recente fala, o general Eduardo Villas Bôas citou o ex-ministro Aldo Rebelo, que precisamente afirmou: “nós éramos um país de mestiços e estamos nos transformando em país de brancos e pretos”.

O RESSURGIMENTO DO NACIONALISMO NO MUNDO

O mundo todo sofreu a ofensiva da globalização econômica e cultural e do relativismo pós-moderno, que tudo compreende como apenas “pontos de vista”. Assim, multiplicaram-se os “pontos de vista” e passou-se a exigir a igualdade total entre eles, reforçando a barreira entre os “lugares de fala”.

Enquanto parte significativa da sociedade ocidental se dilacerava nesse dilema, porém, alguns países tomaram o caminho contrário. A Rússia partiu em busca da ressignificação da sua identidade nacional após a queda do comunismo soviético, e hoje voltou a dar as cartas na geopolítica mundial. A China executou o mais admirável progresso econômico experimentado pela humanidade nas últimas décadas e tem se consolidado como uma das maiores potências do planeta ao lado dos Estados Unidos.

Exercício semelhante pratica a Índia, enquanto na Europa, a Alemanha, a França e o Reino Unido, em busca do tempo perdido, reafirmam suas estratégias sobre ativos nacionais estratégicos.

Um dos assuntos que se destacaram recentemente foi a competição entre as grandes empresas do ramo da aviação internacional. O grupo aeroespacial europeu Airbus anunciou, no ano passado, a compra do segmento de jatos regionais da gigante canadense Bombardier. A americana Boeing, concorrente da Airbus no setor de aeronaves maiores, viu-se em desvantagem diante da informação de que a competidora europeia entraria agora num mercado na qual ela não é capaz de competir. Rapidamente, os olhos da companhia americana deitaram-se sobre a brasileira Embraer. Propostas de negociação já foram apresentadas. 

Uma outra disputa, dessa vez entre a Boeing e a Bombardier, acaba de ser resolvida desfavoravelmente à parte americana na Comissão de Comércio Internacional dos EUA. A Boeing acusou a canadense de dumping através de subsídios ilegais do governo do Canadá e do Reino Unido, mas acabou perdendo.

Trump chegou a intimidar Trudeau e Theresa May, líderes políticos de Canadá e Reino Unido, com a elevação de impostos de importação sobre a Bombardier. A presença dos representantes políticos de grandes potências no imbróglio atesta a importância estratégica e o cálculo geopolítico com que esses países tratam o tema do desenvolvimento. A nação em primeiro lugar, “America First!”.

O NACIONALISMO NO BRASIL

Tudo isso é conhecimento aberto a qualquer um que faça uma breve pesquisa na internet, mas o levantamento público da discussão pela deputada estadual do Rio Grande do Sul, Manuela D’Ávila, pré-candidata pelo PCdoB à presidência da República, em defesa da Embraer, revela movimentos tectônicos mais profundos.

Até pouco tempo, o único presidenciável que vinha tocando em temas realmente relevantes era Ciro Gomes. Sem se apresentar como um moralista “outsider”, como João Doria ou Luciano Huck vem aparecendo, o político cearense desponta há algum tempo como quem propõe fazer política com uma ideia de Brasil como premissa, sem promessas fáceis, mas reivindicando um projeto nacional de desenvolvimento que se identifique com as aspirações comuns do povo brasileiro.

Sobre isso, é indispensável se atentar às palavras do cientista político César Benjamin, atual secretário de Educação, Esportes e Lazer da cidade do Rio de Janeiro:

“Por trás do poderio dos Estados Unidos há uma ideia de Estados Unidos. Por trás da reconstrução do Japão há uma ideia de Japão. Por trás da União Europeia há uma ideia de Europa. Por trás da ascensão da China há uma ideia de China. Se não reconstruirmos uma ideia de Brasil, nenhum passo consistente poderemos dar.

O movimento orquestrado por Ciro Gomes se dissocia claramente do relativismo moralista e identitário. O conteúdo do projeto que se desenha não é a salvação da pátria, mas apenas o pontapé inicial de um processo de longo prazo de reconstrução nacional. E o sujeito do processo não deve ser um ou outro grupo, mas o povo do Brasil.

Não é a primeira vez que Manuela sustenta publicamente uma posição pertinente acerca do desenvolvimento nacional. Em sua página do Facebook, no dia 22 de dezembro de 2017, ela disse:

Mas o debate sobre a Embraer é oportuno porque nos remete ao que queremos ser como país: uma nação produtora de conhecimento e produtos de valor agregado ou uma mera exportadora de commodities?

Logo em seguida referiu-se ao sonho de Santos Dumont, brasileiro inventor do avião, para então afirmar que um sonho desses não se vende. 

Sendo assim, Manuela tem passado longe do oportunismo moralista, mas é ferrenha protetora de pautas identitárias ligadas ao espectro político da esquerda. É inegável, contudo, que acenou corajosamente ao debate sobre o que realmente está em jogo: reconstruir ou fragmentar o país de vez.

De outro lado, bastante se fala, predominantemente nas redes sociais, de um certo patriotismo de Jair Bolsonaro. O que Bolsonaro tem defendido, infelizmente, nem sequer se aproxima de romper as fronteiras moralistas e identitárias. Além de incendiar pautas caras ao embate irreconciliável entre machismo e feminismo, ou entre defensores dos direitos humanos e partidários da tortura, na área econômica Bolsonaro tampouco esboça algo diferente do que já está sendo posto em prática pela equipe econômica do governo atual. Num cenário hipotético em que o debate passasse a ser pautado cada vez mais pelo nacionalismo econômico e pela identidade nacional, Bolsonaro perderia qualquer relevância para as discussões sobre o futuro do país.

Vale lembrar que quando Bolsonaro mobiliza os afetos em torno da violência da Ditadura Militar (1964-1985), não está saudando o nacionalismo. Pelo contrário, conforme lembrado em outra coluna publicada no Portal Disparada, “os militares brasileiros torturaram e mataram seus compatriotas em nome do interesse americano. Jamais foi em nome de um projeto nacional”.

Manuela, ao contrário, surpreendeu positivamente ao defender algo relevante.