GILBERTO MARINGONI: Rápidas linhas sobre as eleições municipais de 2020

GILBERTO MARINGONI: Rápidas linhas sobre as eleições municipais de 2020

1. AVALIAR O PLEITO MUNICIPAL CONCLUÍDO em 29 de novembro é tarefa para lá de complexa. O poder político esteve em disputa em 5.570 municípios. Em 57 deles o jogo foi para segundo turno. Assim, o ângulo de abordagem dos números e tendências pode gerar interpretações para todos os gostos.

2. VALE A PENA LEVAR UMA PRELIMINAR EM CONTA: estas foram eleições completamente atípicas. Realizadas no meio de uma pandemia – que nem sempre entrou na pauta dos candidatos -, ela acontece também num cenário de agudização da crise econômica, falta de rumo do governo federal e por uma tragédia social em curso, da qual o fator mais evidente é uma taxa altíssima de desemprego.

3. UMA ABORDAGEM APENAS QUANTITATIVA nos leva a crer que o MDB, partido que mais conquistou municípios – 784 no total – é o grande vencedor. No entanto, a legenda elegera 1.074 prefeitos há quatro anos e teve um sangramento de quase 30%! Igualmente problemático seria julgar o desempenho do PSOL com base na comparação aritmética com 2016. Lá, a legenda obteve 2.396.090 sufrágios e agora conquistou nacionalmente 2.236.273 eleitores. O fenômeno se deve aos votos de Marcelo Freixo no primeiro turno daquelas eleições (1.163.662 votos), que não se repetiram agora no Rio de Janeiro. A frieza das cifras não pode ser régua principal de análise aqui.

4. DE CERTA FORMA, TODOS PODEM CANTAR algum tipo de vitória, conforme a métrica adotada. O PT que levou uma surra memorável – tinha 630 prefeituras em 2012, caiu para 256 quatro anos depois e obteve apenas 179 agora – e foi expulso das capitais. A agremiação pode dizer que estancou a sangria observada na disputa anterior, quando teve 6.960.506 votos nacionais. Agora conseguiu 6.971.136 (convém lembrar que em 2012 o número era de 17.582.104 votos, quase o triplo dos atuais).

5. ASSIM, É PRECISO VERIFICAR QUE TIPO DE ABORDAGEM se deseja fazer e suas decorrências futuras. É necessário um cuidado adicional. Eleições municipais são regidas por lógicas distintas de enfrentamentos nacionais. Há um exemplo clássico. Nos tempos da ditadura, havia apenas dois partidos, Arena (governo) e MDB (oposição). Em 1974, a Arena foi massacrada nas eleições para deputados e senadores. Para o senado (majoritárias), o MDB obteve 14,5 milhão de votos (18 cadeiras), contra pouco mais de 10 milhões da Arena (6 assentos). Na Câmara (proporcionais), a situação se inverteu. A Arena obteve 11.866.482 votos (203 vagas), ao passo que o MDB recebeu 10.954.440 votos (161 lugares). Por mais que o governo fizesse malabarismos retóricos com seu desempenho na Câmara, aquela disputa marcou um ponto de inflexão irreversível na decadência da ditadura.

6. NA FRIEZA DOS NÚMEROS, o maior vitorioso foi o Avante, legenda de direita fisiológica (ex-PTdoB). Tinha 12 prefeituras e empalmou 80, num crescimento de quase 600%. Qual a repercussão na vida nacional? Próximo de zero, provavelmente. E, apesar de se alardear a derrota de Bolsonaro – o que é real – um dos partidos com ele identificado, o PSL, saiu de 30 municípios em 2016 para se consolidar em 90. A extrema-direita, em número de prefeituras não ficou mal na foto.

7. É DIFÍCIL CLASSIFICAR IDEOLOGICAMENTE OS PARTIDOS de extrema-direita no Congresso. Levantamento do Congresso em Foco mostra que entre os dez mais fiéis apoiadores do governo nas votações estão o DEM, o PSDB, o MDB, o Novo e o PP, Nenhum deles pode ser enquadrado como extremista, embora abriguem em seu interior figuras extremistas e tenham apoiado o golpe de 2016. Mas se tomarmos alguns dos partidos que gravitam em torno de Bolsonaro (Patriota, PSC, Republicanos, PL, PTB e Avante), veremos que eles saíram de 690 prefeituras há quatro anos para 1007 agora.

8. ASSIM, TORNA-SE UM EXERCÍCIO INFINDÁVEL perseguir o rendilhado de siglas, prefeituras e número de votos, pois cada recorte – repetindo – pode apontar um vitorioso diferente. Vale a pena olhar para a política, terreno mais movediço, porém mais importante para tentar vislumbrar tendências futuras.

9. UM TRAÇO COMUM EM VARIADAS ANÁLISES dá conta da derrota de Bolsonaro. É algo não completamente aferido por cifras, mas pelo afastamento que candidaturas ligadas a ele anteriormente fizeram agora. Talvez o caso mais emblemático seja o do PSDB paulistano. Embora Bruno Covas não seja João Dória, ficou patente que o vencedor em São Paulo tentou de todas as maneiras se afastar do Bolsodória de 2018. Agiu corretamente do ponto de vista eleitoral e os resultados mostram isso. Todos os postulantes que reivindicavam Bolsonaro nas capitais – à exceção do Delegado Pazolini, em Vitória – se deram mal. Bolsonaro é o primeiro grande derrotado de 2020.

10. O SEGUNDO GRANDE DERROTADO É O PT, tanto em número de prefeituras, de votos, como de influência política. É uma derrota é irreversível no futuro? Impossível afirmar. O PT segue como o grande partido da esquerda brasileira, por sua história e expressão política. É preciso ver como Lula se colocará diante da conjuntura, após exibir presença discreta na atual disputa. Um possível substituto dentro do partido, Jaques Wagner, viu seus aliados derrotados em todas as contendas importantes em seu estado, a Bahia.

11. O PT NÃO ACABA, É CLARO. Mas pode passar a viver seu momento PMDB pós-Ulysses Guimarães. Recordemos: o partido foi o grande esteio da redemocratização e da Constituinte, teve dirigentes nacionais de primeira linha – além de Ulysses, Tancredo, Brossard, Richa, Marcos Freire, Alencar Furtado, Jarbas Vasconcellos, Miguel Arraes e Francisco Pinto, entre outros. Após o estelionato eleitoral de 1986, quando o presidente José Sarney acaba com o congelamento de preços do Plano Cruzado sem aviso prévio, o partido perde legitimidade e enfrenta o desastre de 1989, quando Ulysses, com 22 minutos diários no horário eleitoral, obtém míseros 4,73% dos votos. A partir daí – e da morte de seu presidente histórico três anos depois – o PMDB tornou-se o partido dos grotões, sem condições de gerar projetos ou lideranças nacionais. Tornou-se uma federação de interesses locais.

12. HÁ UM TRAÇO GERAL A SER LEVADO EM CONTA: a esquerda no geral também sai derrotada. Mas a derrota se dá numa conjuntura de lenta retomada de lutas, em meio à pandemia e à hecatombe social. Estamos limitados pela doença e não podemos sair às ruas. Na maioria das capitais, os enfrentamentos se deram entre facções da própria direita, o que mostra imensas fragilidades da seara progressista. A disputa em Recife, entre adversários desse campo, foi ruim. Criará arestas sérias para o futuro entre PSB e PT. Não terão superação fácil.

13. AS ELEIÇÕES DE 2020 representam, contudo, um avanço em relação a 2018, quando Jair Bolsonaro se elegeu presidente. Nos municípios maiores, a política deu o tom. Saíram de cena a antipolítica e a irracionalidade e na maior parte deles, ressurge, mesmo que de forma encoberta, a escolha de rumos. A maior comprovação disso é que praticamente não houve aventureiros como Wilson Witzel ou Romeu Zema chegando na última hora e virando o jogo. Os enfrentamentos foram mais cartesianos e lógicos. Também sumiu o rebotalho de candidatos com patentes militares, os delegados, capitães, coronéis e generais de boca de urna, com evidentes exceções, é claro.

14. QUEM EFETIVAMENTE GANHOU? Tudo indica ter sido aquilo que André Singer genericamente denomina de Partido do Interior. A denominação classifica as agremiações que “administram o atraso”, e que são pautadas por relações de clientela, como expressão das antigas oligarquias rurais. Entre 1945-66 essa vertente era encarnada especialmente pelo PSD. Após a redemocratização sua atualização é feita por MDB, DEM, PSD, parcelas do PSDB e uma miríade de legendas fisiológicas que transitam entre o buraco da rua e a busca de adesão fisiológica ao governo federal. Ou seja, uma gosma político-ideológica que garante o funcionamento da democracia brasileira como ela é. O velho normal de nossas tradições institucionais.

15. NO ENTANTO, REPETINDO A SINA DO PMDB/MDB, a direita vencedora não registra o surgimento de nenhuma liderança nacional forte, com vistas a 2022. Para a velha direita, a disputa se mostrou estéril como lançadora de novos nomes (o que não invalida revelações ao longo das gestões que se iniciam em janeiro). Os prefeitos eleitos com maior vantagem no primeiro turno, Alexandre Kalil (DEM), com 63,36% dos votos, e Rafael Greca (DEM), com 59,74% já mostraram que não desejam sair dos limites de Belo Horizonte e de Curitiba.

16. NO CAMPO PROGRESSISTA, Ciro Gomes viu seu PDT saltar de 301 prefeituras para 314. Urnas fechadas, o partido mantém a prefeitura de Fortaleza e conquista Aracaju. Está na vice em Recife e Maceió, em coligações lideradas pelo PSB, e em Belo Horizonte (PSD) e Salvador (DEM). Ciro provavelmente sai do pleito do mesmo tamanho com que entrou e segue como liderança importante, apesar do pouco peso do PDT nas maiores cidades do centro-sul.

17. GUILHERME BOULOS É A GRANDE REVELAÇÃO. Obteve 20% dos votos na capital paulista, em memorável campanha, na qual dispunha de apenas 17 segundos de tempo de TV no primeiro turno. Se nos fixássemos numa manchete do site Globo.com
, em 8 de outubro de 2018, a trajetória eleitoral do líder do MTST acabaria ali: “Com Guilherme Boulos, PSOL tem o pior resultado do partido em eleições presidenciais”. A marca nacional fora de 0,58% do total e a paulistana foi de 1,21%. O fato mostra que no terreno da política, conclusões apressadas podem facilmente virar fumaça.

18. AO FORMAR UMA CHAPA PURO-SANGUE – pecado mortal em disputas nas quais a amplitude nas coligações costuma contar valiosos pontos – Boulos acertou na mosca. Explica-se: sua vice foi Luíza Erundina, talvez a liderança política de maior respeitabilidade em atividade no campo da esquerda, juntamente com Lula. O amálgama de renovação e experiência encontrou ali uma fórmula admirável. A campanha contou ainda com uma equipe de comunicação jovem e extremamente inovadora no trato das redes. Mas é fato que o talento individual de Boulos o torna um personagem maior que seu partido.

19. É IMPORTANTE OLHAR PARA SUA VOTAÇÃO em primeiro turno e compará-la com a dos candidatos a vereador do PSOL. Enquanto Boulos amealhou 1.080.736 sufrágios, o total da chapa para o Legislativo municipal alcançou 444.235. Além disso, o site Poder 360 constata: “Apesar de não vencer a eleição para a Prefeitura de São Paulo, o candidato Guilherme Boulos (PSOL) teve uma votação expressiva no 2º turno. Ele teve quase que o mesmo número de votos que a soma de todos os candidatos a prefeito do PSOL no 1º turno pelo Brasil”.

20. A FRENTE QUE SE FORMOU NA CAPITAL paulista no segundo turno é também digna de nota. Não apenas Marina, Ciro, Lula e Flávio Dino apoiaram explicitamente a candidatura do PSOL, como Jilmar Tatto (PT), Orlando Silva (PCdoB) e Marina Helou (Rede) engajaram-se decididamente na campanha de segundo turno, mostrando que há caminhos convergentes para a esquerda.

21. DESTACA-SE AQUI a grandeza de Jilmar Tatto. Criticado em seu próprio partido, não titubeou ao fim do primeiro turno em engajar-se exemplarmente na campanha do PSOL.

22. MANUELA D’AVILA ENFRENTOU NO SEGUNDO TURNO uma aliança brutal de toda a direita gaúcha. Apesar de ter um desempenho ótimo no último debate de segundo turno (Globo), ela teve diante de si um cipoal de preconceitos e mentiras típico das redes bolsonaristas. Mesmo assim, sua campanha a impele para ser figura central no plano nacional nos próximos anos.

23. EDMILSON RODRIGUES, por sua vez, volta à prefeitura de Belém como exceção prática entre a esquerda. Teve também oposição de baixíssimo nível, numa região onde impera a violência. Governará sob cerco, mas com a experiência de quem já dirigiu a capital paraense duas vezes.

24. AS ELEIÇÕES DE 2020 reabrem a luta política em bases racionais, como dito anteriormente. O balanço dessa jornada prosseguirá pelas próximas semanas. Não se pode dourar a pílula diante da derrota da esquerda. Tampouco se pode enxergá-la fora do contexto geral de desgaste do Bolsonarismo e do recuo da senda golpista. A velha direita segue dando as cartas. Parece pouco sob uma ótica de esquerda, mas não é. Num intervalo de 40 anos, vamos viver novamente um período de reconstrução, costura e retomada do progressismo democrático na sociedade brasileira. Quanto tempo durará ou como serão as condições dessas tarefas envolvem variáveis que ainda não estão totalmente dadas.

25. UMA NOTA FINAL: o caminho para a reorganização da esquerda – em meu entender – passa pela retomada das bandeiras que tocam a vida concreta e as dores da população. Hoje eles são a doença, o auxílio emergencial e o emprego. Não se conseguiu criar uma narrativa ou se apontar um caminho para uma política sanitária eficiente. Tampouco a oposição se agarrou à necessidade de vetar a MP 1000 que cortou pela metade o auxílio emergencial. Agora, a batalha deveria ser para estendê-lo em R$ 600 pelo tempo em que durar a Covid-19. E a demanda pelo emprego, contra a fome e a miséria deve ser permanente. Muitas lideranças de esquerda encampam tais reivindicações. Mas ganharemos muito se elas se tornarem objetivos suprapartidários amplos.

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