O triunfo da mediocridade, os militares e o papel da oposição

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Presidente eleito Jair Bolsonaro conversa com vice-presidente eleito Hamilton Mourão durante sessão do Congresso Nacional REUTERS/Adriano Machado
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Governo Bolsonaro: O triunfo da mediocridade, o bode na sala, o contraponto, os militares, e o papel da oposição.

1 – A mediocridade triunfa

A vitória de um candidato limitado como Bolsonaro, com discurso tosco, propostas vazias e que nem tenta esconder seu despreparo para ocupar a presidência de um país tão importante, grande e complexo como o Brasil representa o triunfo de uma mediocridade que vem grassando na nossa sociedade nos últimos tempos.

Como bem escreveu Eliane Brum, num artigo recente no El País Brasil (4 de janeiro), é o “homem médio” assumindo o poder.

Ao se identificar com o “Mito” em suas limitações, sensação de perda de status, preconceitos e ódios inconfessáveis até então e imaginar vários supostos inimigos a serem combatidos, esses contingentes de homens e mulheres “médios” deram a Bolsonaro seus mais radicais apoiadores.

O caldo de cultura BBB, que torna em celebridades instantâneas meros desconhecidos que não possuem nenhum mérito para tal, contribui para esse enaltecimento do comum, do sem nada de especial.

Óbvio que só isso não bastou para a vitória de Bolsonaro, afinal o antipetismo causado pela grande decepção que a população teve com os desvios dos governos Lula e Dilma (e a recusa peremptória de sua cúpula e do Lula em fazer qualquer autocrítica) e a derrocada da economia no último período petista foram ainda mais essenciais para pavimentar a eleição do “Mito”.

Também não podemos deixar de citar o centralismo do identitarismo nas agendas de PT e PSOL como de ajuda fundamental para a vitória das forças mais atrasadas.

Ao subestimar sua própria rejeição e tratar com arrogância e desprezo a inteligência popular o PT deu a Bolsonaro, de bandeja, o único caminho possível para sua vitória.

Bolsonaro e seus seguidores mais radicais devem, portanto, muito ao PT.

Iniciado o governo e muitas barbaridades continuam a ser propaladas nas redes sociais pelo grupo vencedor das eleições. Atitudes e declarações de grande parte do primeiro escalão, dos filhos e do próprio presidente não deixam nenhuma dúvida: a mediocridade chegou ao poder e exibe um certo orgulho em ser e se mostrar como tal.

Olavo de Carvalho sintetiza como ninguém essa condição da imbecilidade com pretensões acadêmicas superiores.

Não por acaso o guru do clã Bolsonaro indicou os ridículos ministros da educação e das relações exteriores que, seguidores de sua cartilha alucinada, só tem causado danos à imagem do Brasil.

2 – O bode na sala

Uma vez no governo as limitações do presidente passaram a causar embaraços e saias justas para os grupos mais preparados dentro do núcleo do poder (militares, Paulo Guedes, Sérgio Moro).

A desenvoltura tresloucada dos filhos do presidente também causa muito desconforto aí.

Pode ser que tenha sido por mero acaso que o mais contido e ponderado deles, o senador Flávio Bolsonaro, seja o alvo do maior processo de desgaste para o presidente até aqui. Como pode, também, não ser casual.

A recomendação médica para que Bolsonaro evite falar, em virtude da recente cirurgia, parece ter sido encomendada pelos estrategistas do governo.

Já está evidente para todo mundo, inclusive para o próprio Bolsonaro (vide a fuga continuada de qualquer possibilidade de entrevista não encomendada) que, quanto menos falar, melhor. Menos riscos de daí saírem besteiras que venham a atrapalhar o próprio governo.

A evidente falta de aptidão para as funções de Estado, inerentes ao cargo, não conseguiu ser relativizada por sequer um mês.

Cada vez mais setores importantes da economia e da sociedade brasileira se dão conta de que temos um bode na sala.

E o bode é o próprio presidente da república recém empossado.

3 – Mourão e os contrapontos

Ao passo que Bolsonaro não desce do palanque e continua esticando a corda que segura (ainda) o frágil tecido social brasileiro, o vice presidente, Hamilton Mourão, não perde uma oportunidade de se mostrar como contraponto aos arroubos do presidente e de seu clã.

Já recebeu em agendas oficiais vários embaixadores. Da Alemanha, Espanha, Holanda e mesmo o da Palestina, a quem afirmou que a mudança da embaixada em Israel não é uma decisão tomada pelo Estado brasileiro. Frisando bem a distinção entre Estado (permanente) e Governo (transitório).

Mourão também não foge de entrevistas e procura ter uma boa relação com a imprensa, marcando diferença da hostilidade com que o presidente e seus filhos se referem aos jornalistas e órgãos de mídia quando não fazem matérias favoráveis para o clã.

Para efeito de comparação, no mês de janeiro Bolsonaro só recebeu em audiência após o período da posse o embaixador da Bolívia, junto com o surreal chanceler, Ernesto Araújo. E muito provavelmente o fez para reclamar da extradição direta para a Itália do Cesare Battisti, que ambos gostariam de exibir como um troféu para deleite de suas hostes mais radicais.

Tanto no caso do auto exílio do deputado Jean Willys, em função das ameaças recebidas, quanto no da arbitrariedade da PF/Judiciário em não permitir que o ex presidente Lula fosse ao funeral de seu irmão, Vavá, Mourão também claramente procurou marcar posição distinta do raivoso radicalismo militante e ideológico do clã presidencial.

Tem se mostrado como mais preparado e mais centrado que o presidente (o que não é difícil) e os efeitos dessa postura já são sentidos mesmo nas redes sociais, tão bem usadas pelos apoiadores de Bolsonaro, a ponto de já surgir uma espécie de torcida para que ele ocupe logo a presidência, antes que Bolsonaro e sua família causem mais desgastes que acabem redimindo “a esquerda”.

Parece um contraponto contínuo pronto para restabelecer a hierarquia militar entre um general e um capitão.

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Presidente Jair Bolsonaro conversa com vice-presidente Hamilton Mourão durante sessão do Congresso Nacional REUTERS/Adriano Machado

4 – Os militares: o porão contra a herança de Geisel

Um ponto importante aqui é que muitas vezes, quando nos referimos aos militares no processo histórico e político brasileiro, cometemos o erro de considerar esses setores como extremamente coesos e sem diferenças internas. Daí generalizamos.

A história mostra que não é bem assim.

Mesmo durante a ditadura militar havia muita disputa e divergências dentro dos quartéis que não chegavam na imprensa, devido às características próprias de um regime de exceção e da hierarquia que norteia as Forças Armadas.

Geisel enquadrou e demitiu o então ministro do exército, Sílvio Frota, para submeter os porões e o próprio exército à hierarquia da presidência da república, garantido, com isso, a futura abertura política, ainda que dentro de sua visão e do ritmo lento que desejava. Frota era defensor da linha mais dura do regime e defendia um fechamento ainda maior.

Bolsonaro se coloca como representante do porão. É a forra de Silvio Frota sobre Geisel.

E o apoio a esse sentimento de apoio (ou de solidariedade, na visão de muitos oficiais da reserva) à linha dura se disseminou recentemente entre os militares, principalmente nos seus clubes, ocupados por oficiais de pijamas, numa reação à condução inábil quando da criação da Comissão da Verdade no governo Dilma.

O próprio Mourão era presidente do Clube Militar quando foi escolhido para compor a chapa presidencial e encarnava todo esse antipetismo.

Não que devamos jogar a história para baixo do tapete, mas na época da anistia foi pactuado (ao menos implicitamente) que esta seria ampla, geral e irrestrita, portanto para os dois “lados”, segundo entenderam os militares na época e entendem assim os militares hoje.

Os líderes civis mais representativos ali, incluindo os que foram perseguidos pela ditadura, concordaram com esse arranjo, que era o possível e mais fácil de ser alcançado.

Brizola, Prestes, Miguel Arraes, Waldir Pires, Darcy Ribeiro, Tancredo, Ulysses, Mário Covas e outros não defendiam propostas de rever esse pacto implícito. Mesmo que muitos deles tivessem todas as razões pessoais para fazer isso.

Ao buscar essa reparação histórica o governo Dilma não teve a leitura do estrago que esta poderia fazer no meio militar. Nem parece ter tido qualquer preocupação com isso.

Não soube ponderar, estrategicamente, os riscos.

Contribuiu para termos uma parcela relevante da população saudosa da ditadura militar, mesmo que a maioria desses sequer tenham ideia do que foi aquele período.

Jogou os militares no colo das novas vivandeiras, apesar de todos os exemplos do perigo disso na nossa história, que o PT parece achar que começou no ABC em 1979.

Esse antipetismo específico da caserna ficou tão arraigado que criou as condições para que mesmo o pitoresco capitão, com seus arroubos e discurso raso, passasse a ser uma opção a ser considerada. E fez com que o então comandante do exército, general Villas Boas, publicasse aquele tweet quando o STF iria deliberar sobre o ex presidente Lula. O que pareceu um absurdo. E é.

Os porões podiam estar se agitando novamente contra o enquadramento hierárquico do Geisel (fizeram isso no caso Riocentro, por exemplo) e Villas Boas buscou, ali, se comunicar mais com seus próprios subordinados do que com o STF, como ele próprio admitiu em entrevista posterior a postagem.

Aproveitando-se desse clima entre os oficiais da reserva – que podem falar, ao contrário dos da ativa – Bolsonaro, sempre que pode, fala como sendo um anti-Geisel, chegando a dizer que de todos os presidentes da ditadura militar é quem não admira.

Se coloca claramente como o cara que vai resgatar os representantes dos porões da ditadura da sua condenação pela história, a começar pelo seu ídolo, o torturador Brilhante Ustra.

E não por acaso vieram desses mesmos porões a explosiva mistura de elementos oriundos dessas forças de segurança com o crime organizado no Rio de Janeiro, antecedentes diretos das milícias que hoje assombram o presidente por sua estreita ligação.

Agora, com o potencial de grande desgaste que pode ser causado à própria imagem das Forças Armadas, em função da proximidade de Bolsonaro com essas milícias, vemos uma preocupação crescente nos quartéis em relação a isso.

Os índices de confiança da população nas Forças Armadas tem se mantido elevados nas últimas pesquisas divulgadas e perder essa credibilidade incomoda seus altos comandos.

A grande simbiose entre militares e o governo Bolsonaro na percepção popular tem sido fator de preocupação para muitos oficiais-generais da ativa, que temem que as Forças Armadas se vejam dividindo com o presidente os desgastes que este tende a acumular.

Daí que uma eventual substituição de um presidente (e seus ministros mais aloprados) envolvido em escândalos com milicianos por alguém que se mostra mais preparado, equilibrado e que, afinal de contas, é um militar na acepção do termo (ao contrário de Bolsonaro, que passou muito mais tempo como deputado do que como oficial do exército) pode ser vista nos quartéis como algo conveniente.

5 – O papel de uma oposição com responsabilidade com o Brasil

Diante desse cenário o papel de uma oposição efetivamente preocupada em defender as conquistas democráticas e os parcos direitos que ainda restam ao nosso povo mais sofrido exige uma leitura aguçada da dinâmica do processo político e um pragmatismo que seja eficaz nos resultados e eficiente na elaboração de uma narrativa de suas ações.

Está mais que demonstrado que os gritos dentro das bolhas de palavras de ordem ao vento não surtem nenhum resultado prático.

Não vai ter copa. Teve. Não vai ter golpe. Teve. Não vai ter olimpíada. Teve. Nenhum direito a menos e, logo em seguida, a reforma trabalhista do Temer tirou dos trabalhadores várias conquistas que vinham desde a Era Vargas. Ou Lula ou nada, eleição sem Lula é fraude. Lula não foi candidato e o PT participou normalmente do pleito. Ele não. Bolsonaro eleito.

Pela narrativa descolada da realidade que a direção do PT insiste em fazer, a população brasileira é sempre tratada como desprovida de qualquer inteligência e, com isso, as incoerências vão se acumulando.

O clima de ódio, que potencializa a polarização do ambiente político, precisa ser minimamente superado, para trazer de volta ao menos um pouco de racionalidade nos debates.

A irracionalidade nas discussões só interessa aos dois extremos do espectro político: de um lado o PT e seu novo satélite, o PSOL, e, de outro, com mais interesse ainda, ao núcleo mais atrasado do governo Bolsonaro.

Como os bolsonaristas se mostraram muito mais competentes que a direção do PT nesse embate – resultados da eleição deixam isso claro – mais uma vez vemos a cúpula petista fazendo o jogo que mais interessa aos discípulos tupiniquins de Steve Bannon.

A recusa do PT em entender a gravidade do momento, ao não fazer uma leitura realista do resultado das eleições, e de se negar a admitir a atual correlação de forças, nitidamente desfavorável ao campo popular, só ajuda aos mais radicais do novo governo.

Nas recentes eleições para mesa diretora da Câmara chegamos ao cúmulo de assistir o PSOL e o PT partirem para o jogo mais rasteiro e desleal com o sempre aliado dos petistas, o PC do B, só por este partido ter tido uma postura realista e pragmática, buscando ocupar os espaços possíveis para desempenhar uma oposição mais consistente ao governo, ao invés de permanecer como mero seguidor das diretrizes emanadas da errática direção do PT.

O que mais incomoda, de fato, o governo Bolsonaro é a possibilidade de ter de enfrentar uma oposição propositiva, racional e responsável. A discussão política dentro da racionalidade e de comparação de propostas é o terreno que Bolsonaro quer evitar, por razões óbvias.

Mostrar todas as contradições e absurdos do novo governo é o dever de uma oposição eficaz.

Mas tem de fazer isso sem passar para a população que deseja o pior, para poder surfar no desgaste do governo, que isso nosso povo não aguenta mais e não é necessário para delimitar quem é ou não oposição.

Manter pontes com as Forças Armadas (afinal se trata de instituição de Estado, não de Governo), especialmente seus contingentes mais nacionalistas, e buscar atrair todas as forças políticas do centro e, mesmo, da direita democrática também são premissas importantes nesse processo.

O perfil de nossa sociedade mudou muito, ficando mais conservadora nos costumes, com o crescimento exponencial da parcela da população que se declara como evangélicos neopentecostais, e isso, por si só, impede uma interpretação superficial de que um desgaste do governo de extrema direita do Bolsonaro resulte, automaticamente, numa vitória da esquerda em 2022.

Pode e deve, lamentavelmente, não ser tão simples assim.

Essa postura arrogante e pretensiosa ao analisar de forma maniqueísta o complexo processo político brasileiro levou alguns próceres do petismo a comemorar a ida de Bolsonaro ao segundo turno em 2018, como se fosse uma garantia da vitória de Haddad.

De novo parece não terem aprendido nada com os ensinamentos da história.

Existe, sim, uma grande possibilidade de que, com um eventual desgaste popular do governo de extrema direita de Jair Bolsonaro, a opção por alguma opção mais de centro ser vitoriosa em 2022. Da mesma forma que Bolsonaro se aproveitou do nem PT, nem PSDB em 2018, pode ocorrer um nem Bolsonaro, nem PT.

Nesse sentido é fundamental que as forças do campo popular, desde já, busquem atrair o centro para suas pautas em defesa de um projeto nacional de desenvolvimento.

E que utilizem todas as trincheiras possíveis no parlamento para fazer os embates.

Momento agudos exigem maturidade e visão estratégica de nossos líderes.

  1. Parabéns pelo texto lúcido, leitura obrigatória para quem pretende ser oposição viável e responsável. Sobre os militares, eu acrescentaria uma coisa: nas cidades do interior, especialmente nas menores, a lembrança dos anos 60 e 70 é de tropas fardadas trazendo infraestrutura, multirões de saúde, material educativo, sem falar no sentido de inclusão à patria que os militares proporcionavam. Essas pessoas sequer sabiam de torturas e violência. Esse é outro ponto que a esquerda de cidade, na sua bolha, não consegue perceber. A retomada de um novo desenvolvimentismo pode explorar o que houve de bom naquela época, sem medo. Abraço

  2. a arte de tomada do poder é nobre. o que está ocorrendo não é acaso. trata-se de uma ação espetacular que colocou o imaginário revolucionário das “sete voltas da muralha” do Mangabeira Unger uma piada de péssimo gosto. a queda de Bolsonaro não tem volta. como saber sobre isso? buscar documentos oficiais que deixam as declarações de Mourão muito mais claras. não tem volta. bem vindo ao presidente Mourão. um gesto simples de boa vinda é lhe dizer que a chave de um enorme sucesso de unidade com desenvolvimento nacional (que incluso anulará o messianismo petista) está na na economia política e na política econômica de Ciro Gomes.

  3. Ótimo artigo, o de Allan Nacif sobre a mediocridade, que alcança a plena realidade política de nosso país. Golpes, traições, falso proselitismo e e uma pletora de hiprocrisia.

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