A melhor vacina contra 2013 é organização

A melhor vacina contra 2013 é organização
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As Jornadas de Junho de 2013 foram marcadas por hostilidade a partidos e organizações políticas de modo geral, como sindicatos, movimento estudantil e etc. Essa atmosfera de profundo individualismo e avessa a qualquer forma de estruturação da luta política foi o que permitiu seu sequestro para fins reacionários por meio de tecnologias estrangeiras que nenhum grupo no Brasil detém o controle. Estava escancarada a porta para a tática de caos do imperialismo, cuja forma mais acabada testemunhamos agora com a ascensão e a decadência do bolsonarismo.

Há quase uma interdição geral no campo progressista à crítica das Jornadas de 2013. Qualquer balanço negativo é visto como rechaço a luta popular. Mas o fato é que seu horizontalismo e ingenuidade política custaram caro aos trabalhadores do Brasil. Se a responsabilidade de junho de 2013 não foi por dolo – e há fortes evidências que apontam intenção nessa desorganização – certamente foi por negligência.

Para comentar sobre as frações sudestinas de junho de 2013, sobretudo em São Paulo e Rio de Janeiro, é comum fazer uma periodização nos balanços daqueles eventos. Até um determinado ato – no caso da capital paulistana, o 7º ato em junho do fatídico ano – aqueles que defendem as jornadas afirmam que as manifestações eram hegemonizadas por grupos de esquerda na luta legítima pelo acesso ao transporte público. Nessa linha argumentativa, é comum um histórico do movimento do Passe Livre, mostrando que esta agremiação era formada por membros de vários pequenos grupelhos progressistas, com representação inclusive de grandes partidos como PT, PSOL e PCdoB e clássicos partidinhos como PCO e PSTU, além de uma sopa de letras de dezenas de micro organizações de toda fauna da esquerda, desde trotskistas até anarquistas de todos os tons.

É verdade que essa colcha de retalhos de frações de grandes organizações e micro grupos – muitos deles bastante sectários, embora não todos – tradicionalmente realizavam protestos contra reajustes da tarifa em São Paulo, muitos anos antes de 2013. No entanto, é importante ressaltar um ponto muitas vezes esquecido: essas manifestações eram quase completamente irrelevantes. Tinham um colorido pitoresco, com uma certa violência, mas bastante contida, quando muito algumas bombas de gás lacrimogêneo, muito menos do que um jogo do Corinthians no Pacaembu. Era o carnaval de rua da esquerda paulistana, com seu público cativo em algumas centenas ou poucos milhares de participantes; quase todos se conheciam da militância no movimento estudantil. Partidos de centro-esquerda, desesperados para manter alguma “legitimidade popular”, usavam o evento para mostrar que “ainda são de luta” e que “não têm medo da rua”. Já os partidecos e outros grupelhos pseudo-radicais participavam para se ver como mais do que efetivamente eram: grupos de leitura e organizadores de boas festas em faculdades de humanas. Na prática, tudo acabava em botecos da Vila Buarque, com acolaradas disputas de citações de autores clássicos do marxismo.

Em São Paulo, até o 7º ato em junho de 2013, tudo apontava para a manutenção desse Fla x Flu semi-anual naquele ano, com pequeninas manifestações com os mesmos rostos de sempre. Mas foi então que as manifestações perderam seu caráter mais determinante: sua irrelevância.

Quem ainda insiste em dizer que o saldo de Junho de 2013 é positivo vê nesse ponto de inflexão o próprio sentido daquele carnaval que ocorria havia tantos anos. Eles responsabilizam a violência policial e o esgotamento do neoliberalismo petucano como vetores de massificação daqueles atos para defender o que fora feito até então. Todos os sacrifícios foram válidos. O grande troféu é o icônico momento em que Datena, ao vivo e a cores, faz uma questionário na televisão indagando se a violência era válida. O “sim” ganhou por ampla margem. Aqui não discutiremos a questão da violência, mas o sentido geral das Jornadas e o aprendizado que dela tiramos para a presente conjuntura.

Para eles, o “sequestro” dos atos teria ocorrido somente depois. Em São Paulo, o caráter reacionário escancarou-se a partir do 8º ato quando fascistas passaram a desfraldar bandeiras separatistas com o lema “Non Ducor, Duco”, embora em diversos atos seguintes setores e grupelhos progressistas insistissem em compor os atos, imaginando que poderiam disputar sua hegemonia. A verdade é que ela já havia sido perdida há muito tempo. Em algum dos atos seguintes, grupos de esquerda entrariam em confronto aberto com grupelhos de extrema-direita. Ali estava a célula-tronco que formaria o Brasil em que vivemos.

A verdade é que a organização do Passe Livre sempre tolerou sua manobra. Com a visão nublada por horizontalismo, permitiram a infiltração desde espiões da meganha paulista até enviados de estranhas think-tanks imperialistas. E isso ocorria a olhos vistos. A esquerda “moderna” pagava por seu vício de origem: a hostilidade a qualquer forma de organização. A composição política era encarada como um entulho autoritário do passado em favor de uma hidra de milhares de cabeças completamente desorganizada de micro grupelhos e pedaços de partidos de centro-esquerda. Abundavam os “independentes” que mais tarde comporiam a massa das manifestações fascistas.

Para piorar, a banalização do protesto era sintoma da completa falta de efetividade das táticas de luta herdadas dos anos 1980. Seu fim era muito mais manutenção da coesão dos grupelhos, sempre em risco de desaparecer, e a cooptação de novos quadros, tudo em clima de micro disputas políticas do movimento estudantil. A questão da tarifa do transporte público como vetor de massificação da organização popular não passava de um chavão para oferecer um fraco elo para essa hidra sem forma.

Realmente, a violência policial e o esgotamento do petucanismo foram catalisadores da massificação reacionária das Jornadas de Junho de 2013. Mas o espontaneísmo de acreditar que somente as condições objetivas são suficientes para a conformação da luta popular foi o que levou a esquerda como um todo (e nenhum grupo é isento de responsabilidade aqui) ao pesado erro de compor aquele movimento. Os movimentos nunca foram organizados pelos setores da esquerda, presos em seu notório individualismo vazio.

Quem realimente organizou foram os grupos fortemente coesos e estruturados da direita.

A massificação atraiu para as ruas setores da classe média sob liderança da direita. Muitos indícios apontam para organizações estrangeiras, como os vínculos de Rogério Chequer com organizações imperialistas. O Vem Pra Rua roubou seu nome das palavras de ordem das manifestações do Passe Livre e o MBL de Fernando Holliday copiou o logo e a sigla da organização – que insistia em manter seu caráter “informal” para evitar o burocratismo.

Na boa época da irrelevância dos atos, a organização dos protestos seguia o velho roteiro dos grupelhos de esquerda que sonhavam que eram células guerrilheiras. Assembleias no Instituto de Artes da UNESP entupidas de discussões sobre Kropotkin, balanços sobre a Comuna de Paris em 1871, as mesmas palavras de ordem dos russos em 1905, em suma, as típicas micro disputas do movimento estudantil, tudo regado a cerveja, irracionalidade e hormônios de vinte e poucos anos. De modo um pouco atrapalhado, as manifestações aconteciam, até que o próximo episódio do movimento estudantil as esvaziassem.

Sob a hegemonia da direita, a organização das Jornadas Reacionárias de 2013 foram profissionalizadas – e assim massificaram. Com o apoio de tecnologias estrangeiras, notadamente de algorimos do Facebook e Google que beneficiavam suas páginas nas redes sociais e principalmente os eventos agendados, as organizações de direita catapultaram os atos de maneira que a esquerda presa num eterno remake de maio de 1968 em Paris nunca foi capaz de fazer. Ali gestariam as organizações que em última instância formariam os demônios gêmeos do bolsonarismo e do lavajatismo, agora em luta pela hegemonia, não do pequeno carnaval político da classe média sudestina, e sim de toda nação.

A derrota da esquerda só se fez clara quando as bandeiras de partido foram violentamente hostilizadas nas manifestações. Em seguida, a polarização, muito mais sintoma do que causa da dupla crise política e econômica, iria nos manter no ciclo vicioso daquela primeira ruptura. Os protestos contra a Copa do Mundo em 2014, as eleições daquele mesmo ano, as manifestações contra e a favor do governo em 2015 e 2016 – toda a história recente do Brasil. O script estava pronto e seguimos esse roteiro à risca nos últimos 7 anos.

Enquanto o capitalismo financeirizado era capaz de oferecer taxas de lucros sadias para a grande burguesia internacional, os governos da “Onda Rosa” da América Latina foram razoavelmente tolerados pelos setores hegemônicos da elite imperialista. Foi assim que o petucanismo neoliberal pode se desenvolver. A partir da crise do subprime de 2008, a burguesia estadunidense entrou numa crise de hegemonia política e econômica cujo auge (até agora) foi Trump.

Desde então, por mais que o petucanismo cedesse aos interesses imperialistas, seu governo já não era mais tolerado. As brigas fratricidas de frações da burguesia estadunidense eram resolvidas fora do território norte-americano e a tomada de nossas riquezas era imperativo para manutenção de sua cada vez mais decadente hegemonia global. Foi assim que, utilizando-se dos aparelhos forjados pelo imperialismo no Brasil, o bolsonarismo pode crescer, auxiliado pela parcela mais fraca das disputas interimperialistas: Trump, Steve Bannon e a “Nova Direita”, formada pelos setores de elite das potências hegemônicas mundiais mais prejudicados pela globalização.

O lavajatismo, por outro lado, tem raízes muitas mais profundas e obscuras na tal “comunidade de inteligência”, com vazamentos de dados e outros estranhos auxílios internacionais. A maioria dos seus quadros são oriundos de setores da classe média sinceramente envolvidos em uma cruzada ideológica pela “Nova Política” contra a corrupção e pela modernização do país, educados em simpósios internacionais de novo constiucionalismo. Uma minúscula parte organizada hegemoniza todo o movimento, à frente da qual perfila Sérgio Moro e a Aliança do Coliseu com as Organizações Globo, de mãos dadas com setores mais progressistas da burguesia nacional (capital financeiro do Itaú e Bradesco, Fundação Lehamn, etc) e mundial (Vale do Silício, grande capital financeiro, etc).

À crise política e econômica mundial somou-se a maior pandemia de que se tem notícia, jogando gasolina na fogueira que vem se armando desde 2008. A intensificação da crise levou a manifestações espontâneas contra o racismo do regime imperial estadunidense naquele país. Nossa nação dependente, constituída por um hipertrofiado setor informal, não conseguiu lidar com a quarentena (em muito devido a instransigência de setores imperialistas encarnados em Paulo Guedes) e pilhas de mortos acumulam-se sobre os escombros da já combalida economia nacional no momento em que os governadores falam em relaxar o distanciamento social, o que muito provavelmente causará um verdadeiro genocídio com a saturação do sistema de saúde.

É nesse cenário que a esquerda tem de se posicionar.

Neste exato instante (05/06), poucos dias antes do aniversário de 7 anos dos primeiros atos de 2013 em São Paulo, o retorno do Anonymous e o embate do lavajatismo e do bolsonarismo determinam a dinâmica das redes sociais. O petucanismo é cada vez mais uma fraca memória de tempos de estabilidade institucional e, embora ainda tenha um peso razoável, sua relevância é minguante. A herança do horizontalismo e do espontaneísmo ainda contaminam toda a esquerda, que se encontra fraturada por causa das manobras violentas do PT em agosto de 2018 para manutenção de sua posição de liderança que, em última instância, pavimentaram a eleição de Bolsonaro.

É difícil saber se as convocações para atos são provocações do bolsonarismo, estratégia do lavajatismo em sua disputa de hegemonia, algum novo ator ou pura e simplesmente produto da irracionalidade da esquerda “moderna”. O que importa é que o caos e a balcanização do Brasil somente interessam ao imperialismo em todas as suas vertentes. Essa vem sendo sua estratégia desda derrota na guerra do Vietnã, adotada de modo bem sucedido no Leste Europeu, no Oriente Médio e no Brasil. No lugar de intervenção militar direta, disseminam o caos e impedem a organização nacional. Lembrando que o imperialismo nunca age de modo unívoco, fraturado em tantas frentes quantas são as disputas internas na burguesia imperial. Neste momento, o PDT e outros partidos foram capazes de entender essa dinâmica e corretamente se abstiveram de convocar atos de rua contra o decadente bolsonarismo. A conjuntura acelerada pode mudar rapidamente o cenário e requerer uma mudança tática, mas por enquanto, esta parece ser a melhor alternativa.

A esquerda não pode cair vítima do mesmo erro, como vem fazendo nas últimas décadas. O atomismo e o individualismo beneficiam somente as forças imperialistas, que se aproveitam de nossas disputas internas para nos dominar. Temos de nos organizar para enfrentar tanto Bolsonaro como Moro-Guedes, mas mirando o centro da política. A contradição central está no avanço imperialista sob o Brasil, que está muito longe de acabar. É necessário liquidar todo o legado liberal que maculou a esquerda para sempre, em sua rejeição a toda organização, vista como “burocrática” e à composição política como se fosse sempre “reboquismo”. Essa organização assume tanta a forma da constituição de coletivos estruturados como a virtude de formar frentes heterogêneas, inclusive com segmentos de fora da esquerda.

Precisamos pensar o Brasil estrategicamente. Essa é a tarefa de nossa geração.

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