Os militares no governo Bolsonaro ou Da honra ao cifrão

Os militares no governo Bolsonaro ou Da honra ao cifrão Foto: Marcos Corrêa / PR

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“Assim, o Estado é espoliado por elas na paz, e, na guerra, pelos inimigos. A razão disso é que não tem outro amor, nem outra força que as mantenha em campo, senão uma pequena paga […]” (Maquiavel, O Príncipe)

Por Tiago Medeiros – Essa epígrafe é um trecho do capítulo em que o autor trata das forças armadas mercenárias e auxiliares. Na ausência das forças próprias, um governante precisa improvisar com outras. O problema é que, movidos apenas pela pecúnia, mercenários e auxiliares são mais um agouro do que um recurso. Se, na presença dos inimigos em batalha, desagregam-se ou desertam, na ausência deles, sugam a substância do Estado que os contrata.

Começo com essa reflexão de Maquiavel porque tratarei da presença dos militares no governo Bolsonaro, e eles não têm dado outra alternativa a quem se pergunta o que estão fazendo lá.

O retorno dos militares à política no Brasil, após a redemocratização, foi gradual e lento. Mas, em 2018, sofreu intensa inflexão. A presença de Jair Bolsonaro, um dos mais competitivos candidatos, os animou – sobretudo os da reserva – a intervir na vida civil nacional em nome da República que eles próprios instituíram. Sonhavam, como sempre, com a reforma do país; e estavam convictos, como sempre, de que eles eram o único atalho à prosperidade.

Cansados de paz, os militares pegaram carona na retórica e na estética de um homem de conflitos. Na ocasião da campanha, petismo e antipetismo pareciam formar duas categorias de brasileiros e Bolsonaro se projetava como líder de apenas uma delas. Treinados para defender o Brasil contra nações inimigas, uma vez na arena ideológica contemporânea, eles juraram defender o Brasil contra si mesmo e firmaram assim uma aliança com o candidato. Nas bolhas das redes sociais, onde Bolsonaro brilhava muito mais do que a estrela do partido adversário, e nos comícios inconfessos de campanha, os militares sentiram a aclamação popular – e, nela, uma oportunidade de promoção. Puseram o vociferante Mourão na chapa e venceram o pleito.

Os primeiros meses de 2019 foram marcados pela dupla personalidade da gestão, dividida entre a ala “ideológica” e a “racional”. Dizia-se que essa última era composta de uma alcateia tecnocrática primorosa, que envolvia a equipe econômica, do liberal Guedes, o Ministério da Justiça, do moralista Moro, e os militares, de sérios e experientes senhores com estrelas nos ombros e penduricalhos no peito. A essa altura, os espíritos fardados adotaram a compostura dos corpos em paletós e deixaram a performance incendiária aos olavetes. Ganharam a simpatia da imprensa, mas perderam apoio nas redes. Parecia que Bolsonaro estava sob a concorrência de duas forças que disputavam sua atenção, sua anuência e a hierarquia de prioridades e exibições do governo, e os militares estavam cumprindo o papel de uma delas: domesticar os ímpetos de rebeldia ziguezagueante do presidente, dando ao governo, senão um horizonte, ao menos uma bitola.

Isso não durou. As tentativas de doação de lucidez a Bolsonaro converteram-se em bolsonarização dos lúcidos. Com o tempo, a equipe econômica foi se desfazendo e Guedes abdicando de seu liberalismo, o ex-juiz Moro caiu e se desmoralizou (com o perdão do já gasto trocadilho), e os militares, de sérios e experientes senhores, passaram a senis figurantes das “lives” presidenciais e companhias para os passeios do motociclista Jair, não antes de uma sequência de humilhações e exonerações ao longo de quase dois anos. Apesar de tudo, segue crescente o número de militares, quer da ativa, quer da reserva, dispostos a contribuir com o governo.

Esse número ultrapassa seis mil, de acordo com o levantamento do TCU em junho desse ano. Eles recebem a remuneração da carreira mais a remuneração pelo cargo comissionado. Quando ultrapassam o teto do funcionalismo, sofrem um modesto desconto que adapta o soldo às exigências constitucionais. Eventualmente, aqueles mais chegados, quando bajulam o presidente ou condescendem às suas escolhas e posicionamentos, recebem de bônus um apreço popular nas redes sociais (conquistando, em movimento contrário ao anterior, a fúria de parte da imprensa profissional). O bolsonarismo os remunera com dinheiro e com vaidade.

Os milicos do generalato passaram a ter, nesse governo, uma vida bem mais movimentada do que aquela em que preparavam irrealizáveis planos de invasão da Argentina ou fantasiavam guerras no território amazônico para o espanto dos tatus e tamanduás. Bolsonaro os ascendeu a uma burguesia apaisana e a uma vanguarda social. É isso, e só isso, o que pode explicar o grau de submissão, de falta de fibra e de honra, diante dos reiterados aviltamentos a que tem sujeitado esses homens. O que se vê no exército sob o comando do capitão Jair é a vitória da conta corrente sobre a honra.

Foto: Marcos Corrêa / PR

O surfe eleitoral na popularidade do ex-capitão, contudo, tem fundamentos morais constrangedores para uma corporação que associa a respeitabilidade à coesão interna. Bolsonaro foi expulso do exército sob a condenação de terrorismo. Os três coronéis do Conselho de Justificação o classificaram como alguém com “comportamento aético e incompatível com o pundonor militar”. O insubordinado tenente chegou a ficar quinze dias em reclusão. Dizia ele, sobre o período em que tramava explodir bombas nos quartéis, que “o exército é uma vergonha nacional”. A sua reivindicação parecia nobre: melhores salários ao baixo oficialato. Mas o alto escalão da época não admitia aos tenentes e demais inferiores em hierarquia a exposição do exército à instituição que recém o destituiu do poder, a imprensa, e Bolsonaro fez questão de estampar a sua oposição aos superiores nas páginas da Veja. Os generais de agora silenciam e tergiversam sobre a moralidade do caso, mas a história não perdoa.

Como registra um importante cientista político brasileiro, a Proclamação da República só foi possível graças à união de dois grupos reciprocamente antipáticos que cindiam o exército imperial em duas culturas: os bacharéis, intelectuais formados pela ideologia positivista (a turma de Benjamin Constant), e os “tarimbeiros”, ex-combatentes da Guerra do Paraguai, que não tinham formação na Escola Militar (a turma de Deodoro da Fonseca). Ali, começou o espírito de corporação que se mantém até hoje. O positivismo inundou os homens de caserna e deu azo ao golpe contra o imperador.

Desde então, a história do Brasil é repleta de tramas e ameaças materializadas sob o eco da mensagem de que a sociedade civil não dá conta de si mesma e que precisa de uma tutela armada. Contudo, nas intervenções militares, diretas ou indiretas, houve sempre uma ideia de Brasil que concorria entre as ideologias dos partidos políticos.

Hoje, o que há é um agrupamento de oportunistas pendurados em um homem incapaz e despreparado, que lhes oferece, por dispositivos legais, o que antes buscava para si próprio por meio de métodos terroristas: o aumento da renda mensal. Bolsonaro tem se tornado especialista em cooptar as forças armadas pelo suborno legal dos salários vultuosos dos cargos comissionados de postos elevados no serviço público. Os militares tornaram-se reincidentes na venalidade.

No exercício da presidência, o ex-capitão fez florescer uma espécie de mercenário que nem Maquiavel, com sua larga experiência de homem de Estado e de leitor da história, previra: tropas que não desertam porque não precisam enfrentar inimigos e que espoliam o Estado por concessão, complacência e cumplicidade de seu dirigente maior. Esses militares são mercenários que pressionam, sem oferecer resultado, a nossa apertada folha de pagamento de pessoal.

O golpe que os militares deram no passado e que agora aplicam com ainda maior precisão é contra a honra de sua própria instituição.

Por Tiago Medeiros, Doutor em Filosofia pela UFBA. Professor do Instituto Federal da Bahia. Membro do Laboratório de Estudos Brasil Profundo (IFBA) e do GT Poética Pragmática (UFBA).

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