Presente de Natal: a Medida Provisória contra a autonomia universitária

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Certas estratégias são clichês tão gigantescos que tendo a duvidar que alguém terá coragem de recorrer a elas. Certas pessoas são tão covardes e violentas que costumo acreditar que sua imbecilidade é previsível. Mas a experiência mostra que estou profundamente enganada em ambos os casos, especialmente no que diz respeito aos atos do presidente Jair Bolsonaro.

Força sem lei

No dia 24 de dezembro, véspera de Natal e período de recesso do Congresso Nacional, foi publicada a Medida Provisória 914 , que dispõe sobre o processo de escolha de dirigentes das Universidades e Institutos Federais e do Colégio Pedro II. Ocorre que Medidas Provisórias são, ou deveriam ser, instrumentos extraordinários com força de lei adotados pelo Presidente da República em caso de relevância e urgência, os quais necessariamente precisam ser submetidos de imediato ao Congresso Nacional (art. 62, CRFB/88).

O próprio uso de Medida Provisória para tratar de uma pauta ordinária, como é o caso desta, já indica que o instituto em questão foi utilizado de forma arbitrária, extrapolando a prerrogativa conferida ao chefe do executivo federal. Assim, é bastante simples a constatação de que a “força de lei” conferida à disposição está totalmente à margem da Lei e da Constituição e que dela só resta a força bruta. Esta é uma discussão que pode (e deve) se complexificar bastante, mas não me aterei a ela nesta breve análise. O que me interessa é chamar a atenção (como muitos estão fazendo) para o absurdo de Bolsonaro recorrer de forma nitidamente errônea a uma Medida Provisória em época de festas de fim ano, num combo de recesso do Congresso Nacional (ao qual a MP deve ser submetida) e evidente afastamento de grande parte das pessoas em relação às notícias e decisões do governo. Só faltou vir escrita em papel de presente.

Universidade sem autonomia

Mas o que está em jogo no enxuto texto da MP 914? É possível resumir de forma muito clara: a autonomia universitária.

A discussão sobre a proporção dos votos por categoria (professores, servidores e estudantes) é extremamente familiar para qualquer um que tenha participado minimamente da política institucional dentro de alguma Universidade ou Instituto Federal. Muitas dessas instituições utilizam o voto paritário, mas não é a minha intenção advogar por essa forma de escolha da consulta pública. Relevante mesmo é dizer que a discussão estava colocada e que existiam setores defendendo as diferentes posições no âmbito de cada uma das Universidades. A questão diz respeito à comunidade universitária, à correlação de forças e à capacidade de enfrentamento do debate pelos diversos setores em cada unidade. Ela é, acima de tudo, política. E, em política, sempre está coloca a possibilidade da derrota, mas, acima de tudo, está colocada a necessidade da discussão. O canetaço natalino de Bolsonaro é um golpe que atinge diretamente a viabilidade da política no interior das Universidades e Institutos Federais.

Ainda mais absurda do que a imposição da proporção de votos por categoria é a questão da lista tríplice, que, segundo a MP, será necessariamente formada pelos três candidatos com maior proporção de votação, dentre os quais o presidente poderá escolher livremente. A novidade reside na formação da lista, e não na possibilidade, já existente, de não necessariamente escolher aquele que foi mais votado pela comunidade universitária. Mas, ainda assim, não se trata de matéria neutra. O último ano revelou uma sucessão de escolhas de candidatos com votação inexpressiva por Bolsonaro, algo que contraria em absoluto o que vinha sendo feito até então. Com o novo texto, se não for derrubado pelo Congresso ao fim do recesso, a intromissão do presidente consolida-se de forma mais grave.
Considero que uma violação deste tipo é o complemento tragicamente perfeito do contingenciamento e corte de verbas para as Universidades e Institutos Federais. Sem dinheiro para investir em ensino, pesquisa e extensão e, principalmente, com dirigentes que respondem ao presidente ignorante e não à comunidade universitária estaremos mais expostos do que nunca à precarização do ensino superior público. No limite, pode significar a inviabilidade de sua existência enquanto tal.

É evidente que a MP 914 pode ser derrubada pelo Congresso, mas seu teor materializa, ainda que momentaneamente, as intenções exaustivamente anunciadas por Jair Bolsonaro em relação às nossas Universidades e Institutos Federais e o faz do modo que lhe é pertinente: com muito autoritarismo. Por fim, cabe lembrar que a dissociação entre forma e conteúdo é ingênua e que o desapego do presidente em relação aos marcos legais e às instituições se mostra cada vez mais desinibido e capaz de levar a decisões desastrosas para o país.