O nacionalismo de Bolsonaro segundo Samuel P. Huntington

Não há nacionalismo no governo Bolsonaro. Infelizmente, Alcântara talvez seja o melhor exemplo disso. A entrega da Embraer para a Boeing é outro.
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Já se foram oito meses desde que o então candidato Jair Bolsonaro venceu as eleições amparando-se no sentimento generalizado de antipetismo enquanto monopolizava o verde e o amarelo da bandeira num suposto nacionalismo em defesa do “resgate” do país.

Sinais, no entanto, estavam dados. Que tipo de nacionalista brasileiro presta continência à bandeira dos EUA, sem qualquer motivo aparente?

Em outro momento, Bolsonaro bateu continência até mesmo para o Assessor de Segurança Nacional de Donald Trump, enquanto o recebia em sua residência do Rio…

E chegou a virar meme nas redes sociais…

Fato é que em apenas seis meses de governo, o Brasil está cedendo aos norte-americanos em questões estratégicas como, por exemplo, o setor de aviação e defesa nacional (a entrega da Embraer para a Boeing), o setor petroquímico (Braskem) e o programa espacial (Base de Alcântara). Cede também em questões menores, tal como a dispensa de exigência de visto para que turistas de lá entrem no Brasil, ainda que não haja reciprocidade do governo norte-americano em relação aos turistas brasileiros.

Samuel P. Huntington, o nacionalismo de Bolsonaro e o imperialismo dos EUA

Muito já foi dito neste site sobre o Acordo de Salvaguardas Tecnológicas entre Brasil e Estados Unidos referente ao uso comercial do Centro de Lançamentos de Alcântara, no Maranhão. Vale indagar, contudo, como um acordo que renderá US$ 10 bilhões ao ano – segundo o governo, apesar de ser uma informação contestável – ajuda a desmascarar o falso nacionalismo de Bolsonaro.

O insuspeito cientista político nova-iorquino Samuel P. Huntington (1927 – 2008), que é um dos autores mais lidos em matéria de relações internacionais contemporâneas por seu livro O choque das civilizações e a recomposição da nova ordem mundial, pode nos ajudar.

Insuspeito porque Huntington não foi um mero pesquisador da política internacional. Sua trajetória é recheada de trabalhos de campo, e sua obra reflete sua vivência prática como consultor do ex-presidente dos EUA Lyndon Johnson  (1963 – 1969) – sob cujo mandato ocorreu o golpe militar de 1964 no Brasil com grave participação norte-americana – e coordenador do Planejamento de Segurança da Casa Branca entre 1977 e 1978.

Entre as coisas difíceis de acreditar na biografia de Huntington, está por exemplo o artigo escrito por ele na revista Foreign Affairs, em 1967, no qual ele defendeu abertamente a remoção forçada de vietnamitas da zona rural do país asiático para as cidades, por parte das Forças dos EUA lá presentes em função da guerra.

A justificativa da “urbanização forçada” (leia-se: intervenção da liberdade de ir e vir de estrangeiros em seu próprio país) era privar as forças revolucionárias do contingente que necessitavam para prosseguir com a guerra contra os invasores americanos e seus fantoches locais.

Pois bem, num texto acadêmico de 1973 intitulado Organizações Transnacionais na Política Mundial, Huntington, já calejado pelos anos no alto escalão da política estadunidense, nos oferece um panorama exemplar, em perspectiva histórica, dos métodos de expansão do poderio de seu país mundo afora.

Apesar de duvidar brevemente do caráter de “império” dos Estados Unidos, ele admite que a presença norte-americana podia, já naqueles anos, ser notada em todos os lugares. Além disso, a expansão do “império americano” (em certo momento, ele utiliza essas palavras), seria plenamente compatível a existência – e até a multiplicação – de soberanias nacionais no Terceiro Mundo.

A multiplicação das soberanias, na verdade, resultaria até em facilidades para o poder norte-americano. Isso porque a essência desse poderio seria nada menos do que a transnacionalidade.

Com esse conceito, Huntington classifica as organizações governamentais ou não-governamentais, públicas ou privadas, cujas operações atravessam fronteiras, encarando mercados ou territórios como membros de uma unidade.

Diferente de antigos impérios, como o britânico e anteriores, ou de potências coloniais, os EUA nunca controlaram diretamente territórios estrangeiros. Obviamente, essa afirmação comporta exceções: Filipinas, Micronésia, Okinawa, a ocupação da Alemanha e do Japão no pós-guerra etc.

A característica fundamental da expansão norte-americana, desde o século XIX, foi a política de “portas abertas”. A princípio, essas portas se abriam para o comércio. Com o passar do tempo e com o avanço tecnológico, militar, econômico e político dos EUA sobre mundo, essas portas passaram a comportar bases militares, subsidiárias de empresas americanas e demais iniciativas privadas e governamentais, fossem de Nova Iorque ou de Washington.

Aliás, há mais de 800 bases militares dos EUA instaladas fora de sua jurisdição, com milhares de soldados estacionados em solo estrangeiro. Esse movimento de instalação de bases militares no exterior, segundo Huntington, está na origem da transnacionalização: para suportar o tamanho da extensão militar, foi preciso separar o “direito de exercer controle político” do “poder de operar”.

O que importa da carcaterística trasnacional da expansão norte-americana é essa liberdade absoluta de operação além das próprias fronteiras, não o controle político de territórios alheios. O imperialismo dos Estados Unidos é caracterizado pelo acesso a esses territórios por parte das operações comandadas em solo estadunidense.

O acordo de Alcântara não poderia se encaixar mais adequadamente nessa definição. Segundo Sérgio Amaral, embaixador do Brasil nos EUA no momento do acordo, “Teremos em Alcântara um espaço para proteção de tecnologia americana, mas continua sendo espaço de jurisdição brasileira. Não é cessão de território para ninguém, é um espaço que foi transformado em área de acesso restrito.

Samuel Huntington não precisaria sequer recorrer a autores nacionalistas brasileiros para qualificar esses termos em conformidade com sua definição do imperialismo dos Estados Unidos. Basta ter em conta que, historicamente, seu país expandiu seu poder e conquistou hegemonia global através da conquista política de liberdade de operação além das próprias fronteiras.

Não escapa a Huntington que as condições materiais para que a transnacionalização se concretizasse fossem de âmbito tecnológico e político. O encurtamento das distâncias através das revolução tecnológica nos transportes e na comunicação foram indispensáveis, assim como a existência de acesso político aos territórios no exterior.

Não há nacionalismo no governo Bolsonaro. Infelizmente, Alcântara talvez seja o melhor exemplo disso.

A entrega da Embraer para a Boeing é outro. O parecer sigiloso elaborado pela Força Aérea Brasileira (FAB) e vazado em Maio na imprensa revela que a empresa americana é que precisava absorver a Embraer para sobreviver à competição com a concorrente europeia Airbus, que havia cerrado fileiras com a canadense Bombardier.

A questão é: se havia um estudo da FAB indicando que o negócio não era bom para o Brasil, por que o governo ainda assim decidiu entregar mais um setor sensivelmente estratégico aos norte-americanos?

Certamente o governo dos EUA possui um acesso político, nos termos de Huntington, sem precedentes na história brasileira recente. Talvez um caso parecido seja o governo de Castello Branco no início da ditadura, cujas práticas logo foram enterradas pelos militares nacionalistas que o sucederam.

Aos que se envergonham com o inglês muito mal falado de Eduardo Bolsonaro, futuro embaixador em Washington, não se preocupem: o governo brasileiro entende muito bem o que significa o tal national interest.