Nacionalismo, comunismo e fascismo na América Latina: o que nos diz a história

Distintamente dos países europeus, onde o nacionalismo exprimia os interesses do grande capital em seus esforços de expansão (e daí o neocolonialismo empreendido pelos regimes fascistas), na América Latina o nacionalismo se desenvolveu em oposição aos interesses imperialistas dos EUA. Daí que o nacionalismo-popular latino-americano confundisse, no espectro político, os paradigmas de direita e esquerda: do justicialismo peronista, surgiriam tanto a Alianza Anticomunista Argentina (conhecida como Triple A), milícia de extrema-direita, quanto os Montoneros, guerrilheiros marxistas; do varguismo, ascenderiam tanto os quadros políticos do Estado Novo e da Ditadura Militar quanto o trabalhismo esquerdista de Leonel Brizola. E se os comunistas tachavam Perón de fascista, as oligarquias o acusavam de ser comunista, e o mesmo ocorria com Vargas. E ainda que o socialismo militar do MNR e da Radepa, na Bolívia, tenha se identificado mais com as ideologias das direitas europeias e o nacionalismo cubano de Fidel com o marxismo-leninismo, ambos expressavam uma tendência que, na América Latina, constituiu a mais fiel e fidedigna força revolucionária do século XX: o nacionalismo.
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Por Tiago Nogara – No dia 21 de julho de 1946, o palácio presidencial boliviano em La Paz foi invadido por populares. Inspirados nas execuções dos fascistas italianos por comunistas, assassinaram o então presidente, major Gualberto Villarroel López, queimando seu corpo em plena Plaza Murillo, e terminando por pendurá-lo em um poste, junto de outras autoridades já enforcadas. O ato fora insuflado e dirigido pelo Partido de la Izquierda Revolucionaria (PIR), comunista, em aliança com a Concordancia, coalizão de partidos que representava as velhas oligarquias bolivianas. Nessa frente ampla, constava também o explícito apoio da embaixada dos Estados Unidos da América (EUA).

Villarroel fora alçado ao governo a partir de um golpe militar dirigido pelo Movimiento Nacionalista Revolucionario (MNR) e a Radepa, organização de jovens oficiais com experiência na Guerra do Chaco (1932-1935). Nos estratos dirigentes de ambas constavam elementos simpáticos aos ideais fascistas, e em muito se assemelhavam aos demais movimentos nacional-populares que surgiam concomitantemente no Brasil e na Argentina. Durante a gestão de Villarroel, diversas foram as conquistas garantidas para o povo e o Estado boliviano: elevação da tributação sobre as atividades mineradoras; estabilidade dos trabalhadores eleitos para cargos sindicais; imposto sindical; regulamentação do pagamento de gratificação natalina aos trabalhadores; aumento salarial para os mineiros; medidas de proteção aos demitidos; patrocínio à criação da Federação Sindical dos Trabalhadores Mineiros Bolivianos (FSTMB) e à realização do I Congresso Nacional Indígena; o anúncio do fim da pongueaje (trabalho semiescravo que os indígenas realizavam para os patrões); além da obrigatoriedade de pagamento de salários para trabalhadores agrícolas e o direito dos produtores venderem parte de suas colheitas.

O major Gualberto Villarroel, liderança nacional-popular boliviana, foi enforcado em plena Plaza Murillo.

No entanto, não é surpresa que os comunistas do PIR, com a aquiescência dos troskistas do Partido Obrero Revolucionario (POR), endossassem direta e indiretamente os interesses da Concordancia, dos barões do estanho e da embaixada estadunidense contra o governo nacional-popular de Villarroel. Afinal, posturas semelhantes foram adotadas pelos comunistas, à época, nos demais países latino-americanos, partindo das mesmas distorções geradas pela observação das nossas realidades nacionais a partir do contexto político de outras sociedades. E dependesse de suas orientações estratégicas, provavelmente a sorte de Perón ou Vargas não teria sido muito distinta da de Villarroel.

Como já mencionado em “Questão nacional e esquerdismo infantil: as lições da história”, o Partido Comunista da Argentina (PCA) era o que mais detinha influência sobre as seções latino-americanas da Internacional Comunista (IC), e não titubeou em se aliar ao embaixador estadunidense Spruille Braden e aos liberais entreguistas para orquestrar um golpe contra o nacionalista Juan Domingo Perón, supostamente “fascista”. Da mesma forma, o Partido Comunista do Brasil (PCB) insistia em tachar a gestão de Getúlio Vargas como “instrumento servil dos imperialistas norte-americanos” e “governo de traição nacional”. Em Cuba, a revolução de 1959 não foi dirigida pelo Partido Socialista Popular (PSP), antigo partido comunista, que inclusive se opôs às agitações dirigidas por Fidel Castro no Quartel Moncada, entendidas como “atividades aventureiras da oposição burguesa”.

Distintamente dos países europeus, onde o nacionalismo exprimia os interesses do grande capital em seus esforços de expansão (e daí o neocolonialismo empreendido pelos regimes fascistas), na América Latina o nacionalismo se desenvolveu em oposição aos interesses imperialistas dos EUA. Daí que o nacionalismo-popular latino-americano confundisse, no espectro político, os paradigmas de direita e esquerda: do justicialismo peronista, surgiriam tanto a Alianza Anticomunista Argentina (conhecida como Triple A), milícia de extrema-direita, quanto os Montoneros, guerrilheiros marxistas; do varguismo, ascenderiam tanto os quadros políticos do Estado Novo e da Ditadura Militar quanto o trabalhismo esquerdista de Leonel Brizola. E se os comunistas tachavam Perón de fascista, as oligarquias o acusavam de ser comunista, e o mesmo ocorria com Vargas. E ainda que o socialismo militar do MNR e da Radepa, na Bolívia, tenha se identificado mais com as ideologias das direitas europeias e o nacionalismo cubano de Fidel com o marxismo-leninismo, ambos expressavam uma tendência que, na América Latina, constituiu a mais fiel e fidedigna força revolucionária do século XX: o nacionalismo.

Na América Latina, o nacionalismo segue sendo a mais genuína força revolucionária de nossos tempos.

Ainda que os exemplos aqui enumerados se restrinjam ao século passado, contribuem, em sua essência, para elucidar a contradição fundamental que permeia nossas sociedades até os dias de hoje: aquela entre as classes sociais que se afirmam e progridem a partir da expansão das forças produtivas nacionais, uma fração da burguesia e o grande contingente de trabalhadores, e as classes atreladas aos interesses imperialistas e à sustentação de um modo de produção parasitário, representadas pelo capital financeiro e as frações burguesas não-contraditórias com o capital transnacional.

Aderindo às leituras das teorias da dependência e das seitas trotskistas, o revisionismo histórico apregoa que o fracasso dos partidos comunistas na América Latina foi fruto das alianças destes com as burguesias nacionais e com os movimentos nacional-populares. No entanto, o próprio caso brasileiro é ilustrativo da debilidade de tal visão. O ápice da influência política do antigo PCB coincidiu com seus períodos de alinhamento às forças trabalhistas, tanto ao final da Segunda Guerra Mundial quanto na década de 1960. Na contramão, quando insistiu numa estratégia de enfrentamento aberto às forças nacionalistas, de direita ou esquerda, passou por seus piores momentos de isolamento. Na Argentina e na Bolívia, as opções do PCA e do PIR em marcharem contra o peronismo e o MNR também resultaram numa transição do protagonismo em direção ao esquecimento.

Num momento de reconstrução do paradigma reinante nas esquerdas brasileiras, as lições da história são os mais importantes instrumentos capazes de evitar a repetição de velhos erros. E nesse sentido, é válida a advertência do célebre historiador e militante político argentino Rodolfo Puiggrós:

“Em nossos países, a revolução nacional anti-imperialista faz com que classes sociais com distintos interesses vão à luta, umas que objetivam o capitalismo e outra que buscam o socialismo, e é dentro desse movimento policlassista que a classe trabalhadora deve conquistar sua hegemonia. Fora do movimento policlassista (e ainda mais contra ele) se condena ao isolamento e à esterilidade. Cientes disso, se fazem de surdas as diversas seitas que instam os trabalhadores a se separarem desse conjunto.”

Que a amplitude e a firmeza ideológica orientem as ações dos que almejam transformar os rumos da nação, já que o sectarismo e o anacronismo do esquerdismo infantil guiarão seus adeptos ao mesmo caminho dos seus homônimos de outrora: o das páginas amareladas das lições da história.

Por: Tiago Nogara.

 

Distintamente dos países europeus, onde o nacionalismo exprimia os interesses do grande capital em seus esforços de expansão (e daí o neocolonialismo empreendido pelos regimes fascistas), na América Latina o nacionalismo se desenvolveu em oposição aos interesses imperialistas dos EUA. Daí que o nacionalismo-popular latino-americano confundisse, no espectro político, os paradigmas de direita e esquerda: do justicialismo peronista, surgiriam tanto a Alianza Anticomunista Argentina (conhecida como Triple A), milícia de extrema-direita, quanto os Montoneros, guerrilheiros marxistas; do varguismo, ascenderiam tanto os quadros políticos do Estado Novo e da Ditadura Militar quanto o trabalhismo esquerdista de Leonel Brizola. E se os comunistas tachavam Perón de fascista, as oligarquias o acusavam de ser comunista, e o mesmo ocorria com Vargas. E ainda que o socialismo militar do MNR e da Radepa, na Bolívia, tenha se identificado mais com as ideologias das direitas europeias e o nacionalismo cubano de Fidel com o marxismo-leninismo, ambos expressavam uma tendência que, na América Latina, constituiu a mais fiel e fidedigna força revolucionária do século XX: o nacionalismo.