Não existe a nova política

Não existe a nova política
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Para iniciar: nova política não existe. E o que farei nas linhas seguintes será demonstrar as razões pelas quais essa premissa é verdadeira. Em primeiro lugar, será exposta a forma pela qual esses “movimentos de renovação” surgiram no Brasil e as suas estratégias para o seu crescimento no meio, sobretudo, daqueles que sempre estiveram distantes da militância política. Em seguida, serão desconstruídas todas essas estratégias e a sua narrativa revelando que, veladamente, sempre enganaram a população com um discurso de bom samaritano, porque o que de fato almejavam era o poder.

Nos últimos anos, precisamente após as jornadas de 2013, surgiram inúmeros movimentos sociais, muitos deles logrando aceitação no campo da direita política e, também, do centro em detrimento de grupos denominados de esquerda por meio de sua paulatina demonização, talvez, enquanto manifestação remanescente da rejeição ao Governo Dilma Rousseff e ao PT, incrustado em parte do imaginário popular enquanto principal responsável pela crise – obviamente sem sê-lo – permanente que vivemos até os nossos dias atuais.

Dessa estratégia talvez germinaram bons frutos para os movimentos como o MBL, Vem Pra Rua e até para o surgimento de um partido liberal como o NOVO. Para os “movimentos de renovação”, porém, essa estratégia era insuficiente. Não bastava demonizar a esquerda política; era necessário desacreditar a política integralmente para que apresentassem à sociedade algo em que pudessem acreditar. Nessa nova estratégia se construiu uma narrativa de que os partidos e movimentos de esquerda não eram unicamente os responsáveis pela crise, mas os do espectro da direita também. Na verdade, seria da polarização desses dois espectros que nasceria a real crise brasileira. Diz a narrativa: “de que maneira o Brasil terá progresso se a esquerda e a direita estão mais preocupadas em polarizar do que construir?”.

E é com base nessa narrativa que esses “movimentos de renovação” justificariam a sua existência. Entretanto, haveria claros entraves: a legislação eleitoral brasileira preconiza que a representatividade política da população se dará somente por meio de um processo eleitoral bem definido e a viabilização dos civis se dará exclusivamente por meio de partidos políticos. Eis que surgem os principais inimigos desses movimentos: os partidos políticos. Se o principal problema que causava a crise no país era a polarização, os principais instrumentos que davam corpo a essa polarização eram os partidos políticos.

Reconhecendo a sua insignificância diante da história dos partidos políticos, esses “movimentos de renovação” passaram a elaborar estratégias para que os seus possíveis parlamentares e/ou chefes do executivo tivessem a maior autonomia possível dentro de tais partidos a fim de que atendessem a seus objetivos enquanto instituição e das quais vale apena citar duas: uma nova e uma velha.

A estratégia considerada nova diz respeito a uma tal “carta-compromisso” em que o partido político se comprometeria a respeitar a autonomia do “movimento de renovação” em relação aos seus princípios – desconsiderando totalmente a existência de uma legislação própria dos partidos – e supostamente a de seu parlamentar; estratégia elaborada e proposta pelo Movimento Acredito. Já a estratégia velha diz respeito a um antigo jogo da burguesia: injetar recursos na campanha do candidato e, caso venha a se tornar parlamentar, cobrá-lo em suas posições. Essa última estratégia é possível vislumbrar claramente na figura do movimento RenovaBR que, em suas primeiras edições, destinava uma opulenta bolsa aos candidatos e os apresentavam a grandes empresários de modo que soubessem a quem solicitar “doações”.

E dessa maneira se apresentaram para o mundo os “movimentos de renovação”: movimentos que demonizaram a política brasileira levando à sociedade uma narrativa de que a crise tinha a sua origem na polarização entre os grupos e partidos políticos da esquerda e da direita e que, somente a população organizada por meio desses movimentos, “sem ideologia”, “sem intenção de polarizar” e preocupados com os rumos de “todos os brasileiros”, é que seria possível fazer o Brasil entrar novamente nos trilhos do progresso. Sintetizaram toda essa narrativa em uma máxima fácil de se recordar e a qual incessantemente afirmam: “eles são a velha política; nós a nova”, isto é, a velha política é que está corroendo o país e, portanto, seriam os movimentos de renovação a salvação. Todavia, como já nasceram com o fado da necessidade de negociar com partidos políticos, estariam bem preparados com as suas estratégias para “burlar” as suas normas e programas.

Enfim, temos o histórico e as estratégias utilizadas por esses “movimentos de renovação e à essa altura há prontidão para se demonstrar a veracidade da premissa desse artigo. De uma coisa deve-se ter clareza: para se viabilizar e defender os seus interesses esses movimentos tinham que desacreditar[1] a política brasileira. Portanto, era necessário demonizar integralmente a política brasileira e chamá-la de velha para que aquilo que se colocava como novo fosse uma alternativa. E como os partidos políticos é o que dão corpo à “velha política”, seria sobre eles que recairiam os seus principais ataques.

Nesse sentido, a demonização dos partidos políticos e dos movimentos sociais confessados partidários ocorreu e ocorre a partir de três argumentos basicamente: a) essas instituições eram polarizadoras e inviabilizavam um projeto para a sociedade como um todo; b) essas instituições são retrógradas, engessadas, autoritárias, antidemocráticas e impedem o exercício do livre pensamento; c) e o último diz respeito à ideia de que essas instituições não representam a sociedade. Conclusão, desacredita-se essas instituições para viabilizar novas, isto é, para viabilizá-los.

Quando esses movimentos se utilizam do primeiro argumento apresentado preconizando que a polarização é o principal entrave para se sair da crise, eles buscam negar a toda história da política e, especialmente, da democracia. Na verdade, negam o próprio funcionamento de um regime democrático. Um dos princípios republicanos é o da representatividade sempre em nome do povo para a gestão do que lhe é comum, a res publica.

Entretanto, é evidente que a sociedade brasileira vive dividida em classes sociais e que, portanto, essa representação se dará sempre em uma disputa permanente para que cada classe coloque à frente os seus interesses. Não é à toa que os partidos políticos existem para defender os interesses de cada parte da sociedade; se a população está dividida entre aqueles que possuem recursos e são donos dos meios de produção e entre aqueles que são assalariados apenas, de que maneira não haveria polarização posto que cada parte estaria preconizando os seus próprios interesses?

Afinal, haveria a possibilidade de que uma única instituição política representasse a toda população brasileira? Aparentemente, não. Pelo menos é isso que a História ensina. Não é à toa, então, que existe o regime democrático. Para que periodicamente se faça administrar, o que é comum ao povo, por partidos diferentes e com propostas diferentes de maneira que sempre o principal dono do poder, o povo, escolha qual será o próximo administrador. Dessa forma, quando esses movimentos negam esses princípios republicanos, ludibriando a população e incentivando a sua despolitização, negam e atacam a própria democracia da qual se colocam enquanto principais defensores.

Quando esses movimentos se utilizam do segundo argumento de que essas instituições políticas são retrógradas, engessadas, autoritárias, antidemocráticas e impedem o exercício do livre pensamento, intentam também contra a democracia, não apenas o regime do país, bem como a dos partidos políticos. Esse ataque ou argumento tem duas características: a primeira, quando dizem que o partido é retrógrado e engessado, ou seja, a sua identidade; e a segunda ao afirmarem que são autoritários e antidemocrático diz respeito à própria legalidade dessas instituições.

À primeira característica: um partido político, quando é fundado, exige-se dele: um programa e um estatuto. O próprio ato constitutivo que lhe traz existência legal exige que os partidos políticos tomem um lado, tenham princípios, tenham bandeiras claras e distintas das quais fará defesa, ou seja, tenham uma identidade clara. Não haveria sentido, na verdade, fundar um partido político se não fosse para que tivessem princípios inegociáveis, por exemplo, a defesa intransigente do trabalhador, conforme no caso dos partidos trabalhistas, ou na defesa implacável da sustentabilidade por aqueles partidos que trazem no seu bojo a defesa da natureza.

Se ao criticarem, criticam esses princípios de identidade, realizam uma crítica sem sentido. Se, no entanto, criticam a maneira pela qual são definidas as práticas dos filiados e o modo como se adequarão a esses princípios, entramos na segunda característica, ou seja, o que diz respeito ao aspecto legal. Todo partido político tem o seu estatuto e nesse estatuto há todas as normas que lhe atribuem forma e estrutura. Nesse estatuto é definido, sobretudo, a maneira pela qual ocorrerão os diálogos, as discussões para se definir quais serão as práticas dos filiados.

Existem partidos que se constituem enquanto correntes que disputam internamente a sua dirigência e há aqueles que se estruturam a partir de eleições por chapas, mas sem correntes. Em ambos os exemplos encontramos maneiras democráticas para se disputar a direção do partido político, a sua narrativa e a hegemonia das práticas dos filiados. Aliás, todos os filiados podem e devem estar envolvidos nesse processo para que eles próprios definam o destino do partido no qual se filiaram voluntariamente. Conforme é possível verificar, não é que inexiste democracia dentro dos partidos políticos, o grande problema é o caráter inegociável de seus princípios e contra os quais os possíveis parlamentares desses movimentos poderão se posicionar contra em sua atuação.

Porquanto, por um lado: todos os filiados podem democraticamente participar das atividades do partido, opinar, sugerir novos caminhos, novas práticas, novas narrativas; logo, não haveria aqui o autoritarismo alegado por esses movimentos, posto que o estatuto asseguraria a todos os filiados a oportunidade de participação ativa. Por outro lado, não é possível se colocar contra os princípios do partido político, aqueles princípios sem os quais o partido deixa de existir; aqueles princípios que penetram na práticas dos filiados, das bases, do partido, que edificam-lhe e lhe dão vida. E talvez seja por essa razão que esses movimentos denominam essas instituições autoritárias: porque elas não se vergam à força do fisiologismo, como tantas outras siglas[2].

Em relação ao último argumento, para tentarem demonizar definitivamente os partidos políticos e os seus movimentos, dizem que essas instituições não representam a sociedade; que dos 33 partidos políticos atualmente existentes no Brasil, 65% da população não tem uma sigla com a qual se identifique (Fonte: Datafolha). Contudo, deve-se ponderar dois aspectos acerca desses dados apresentados: o primeiro é o de que não se identificar não quer dizer repudiar, não tolerar. O povo brasileiro foi marcado historicamente por figuras messiânicas que persistem em povoar o seu imaginário, seja em virtude do longo tempo sob a monarquia e o império ou sob o domínio dos coronéis (que ainda existem) e dos ditadores, a população brasileira ainda atribui mais valor ao poder executivo, à figura personificada de alguém que resolverá os problemas. Isso  logicamente afasta os cidadãos de ações coletivas por desconhecerem o funcionamento do sistema.

O segundo diz respeito às últimas eleições: embora 65% não se identifique com os partidos políticos (vale notar que há outros 35% que se confessam partidários), nas últimas eleições do ano de 2018, dos 147,3 milhões de eleitores aptos a votar, 21,3% do total de eleitores não compareceram às urnas para votar. Foram mais de 106 milhões de votos nominais, fosse em Jair Bolsonaro, fosse em Fernando Haddad, e 11 milhões somados brancos e nulos, ou seja, 78,7% dos cidadãos aptos a votar compareceram às urnas (Fonte: TSE). Desses últimos brancos e nulos, pode-se ainda considerar que houve impacto do anti-bolsonarismo fundido ao anti-petismo. Dificilmente se mensura
quantos cidadãos desse número realmente não se identificariam partidariamente. Fato é, em que pese os dados do datafolha, o brasileiro e a brasileira continuam acreditando na forma pela qual a própria política brasileira funciona, provando isso ao comparecer maciçamente às urnas para escolher o seu presidente.

A conclusão é que esses movimentos buscaram desacreditar as instituições brasileiras, por meio de todas as falácias aqui expostas, engendrando uma narrativa negativa acerca da democracia brasileira e suas instituições políticas, nomeando-as de velhas e ineficientes para viabilizar novas, isto é, para viabilizá-los. É a mesma tática em que um candidato acusa o seu adversário de ser corrupto, ignorante, contra a família, contra os valores, contra a moral, e, após negativá-lo no imaginário do eleitor, viabiliza-se enquanto o candidato ideal.

É nesse momento que se revela a maneira pela qual esses “movimentos de renovação” se utilizaram e se utilizam dos velhos métodos da velha política para angariar a aceitação popular. Difamam, caluniam, desmoralizam, demonizam e atacam aqueles que são os seus adversários para que, tendo os partidos políticos, os seus movimentos e os movimentos confessadamente políticos, as suas imagens negativadas e não toleradas pela sociedade em geral, apresentarem-se enquanto a salvação, enquanto os seres iluminados para salvarem a política brasileira por meio de uma renovação.

Afinal, cabe questionar: qual a real diferença entre as estratégias: “nova política” versus a “velha política” e Jair Bolsonaro (antipetismo) versus petismo?

Por Igor Wefer.

Referências

Referências
1 Importante dizer que eles não deram início à rejeição da política. Na verdade, constataram-na. O apolitismo é um fenômeno muito antigo cuja origem se encontra no momento de descaracterização da pólis grega em virtude do deslocamento do foco do problema filosófico primeiro: deixava de ser o cosmos e a sua ordem para que o homem passasse a ser o principal objeto de problematização e reflexão. Com deterioração espiritual da pólis e da coletividade e o foco gradualmente mais exacerbado no homem, conheceu-se o fenômeno do apolitismo que se repete com frequência em toda a História, inclusive, no Brasil dos últimos anos. O que esses movimentos fizeram foi se utilizar desse espírito apolítico de parte
da população brasileira para conquistá-la e ampliar as suas bases nesse campo especialmente. Para ver
mais sobre: Eric Voegelin, em Helenismo, Roma e Cristianismo Primitivo – História das Ideias Políticas
– Volume I.
2 Afinal, os seus parlamentares buscaram se candidatar pelos partidos políticos menos fisiológicos possíveis revelando, assim, que os seus frequentes e atuais ataques são para os que resistem em manter a sua história e a sua identidade sólidas.