Neoliberalismo do século XXI inaugura a Era do Príncipe Boçal

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A expressão contida no título deste texto propõe continuar a reflexão feita por Octavio Ianni num dos capítulos de seu livro “Enigmas da modernidade-mundo” (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003). Nele o sociólogo destaca três dos vários “príncipes” que a história da política nos ensina como teoria e prática: O “Príncipe” de Maquiavel com o qual o florentino inaugurou no século XVI o pensamento político moderno; o “Moderno príncipe”, a teoria formulada por Antonio Gramsci no século XX sobre o partido político, como “intérprete e condutor de indivíduos e coletividades”; e o “Príncipe Eletrônico”, marcado pela agência da grande parafernália das tecnologias da informação e comunicação, também no século passado.

Este último não seria mais o quarto poder, mas o elemento interpenetrado nos clássicos Executivo, Legislativo e Judiciário, desafiando-os, assim também os partidos, sindicatos, movimentos sociais e segmentos diversos da chamada opinião pública, essa incerta e intangível instituição da globalização muito diferente da “opinião pública” surgida, segundo Jürgen Habermas, nos cafés parisienses do século XVIII. O tal “Príncipe Eletrônico” vem se transformando a cada dia, desafiando também o “Príncipe Midiático” representado pelos grandes meios de comunicação tradicionais e assumindo um rosto difuso e robotizado, também intangível e contraditório, muitas vezes perigoso e temerário, outras vezes mostrando sua potencialidade para os aprendizados e retrocessos da democracia.

Já a materialidade de um novo tipo – o do “Príncipe Boçal” – está mais diretamente vinculada em suas determinações e origens ao caráter brutal e bárbaro do neoliberalismo do que à forma tecnológica de sua expressão, embora esta esteja intimamente vinculada àquele. Sua essência está mais no sentido e nas finalidades do golpe desferido pelo Capital no próprio capitalismo a partir dos anos 1970, depois de três décadas “keynesianas” do pós-guerra sustentadas pelo pacto entre Estado, Capital e Trabalho. Ao romper este pacto, menos do que uma imanência de progresso e “evolução”, o grande Capital, que resolveu não mais pagar impostos e salários dignos, a fim de garantir a valorização do valor (nada mais), criou uma nova maneira esdrúxula, corruptora e disjuntiva de sociedade, incidindo em todas as dimensões da vida individual e coletiva.

Isso porque o neoliberalismo não se reduz a uma forma econômica do ser social, constituindo hoje fenômeno compreendendo um conjunto de valores, comportamentos, visões e práticas que perpassam todas os aspectos da vida dos indivíduos. Isso, repita-se, no âmbito público e privado, a partir da barbárie propiciada pelas seguintes instituições da contemporaneidade: o “mercado livre”, essa hipocrisia que deifica o mantra fantasmagórico básico das relações entre os países; a “desregulamentação”, como necessidade inevitável, uma mentira imposta pelos imperialistas aos neocolonizados; a “privatização”, esta sanha da rapinagem dos que estão com recursos e liquidez sobrando no hemisfério norte e, como alcateias em disputa, se apropriando de formas produtivas já prontas em outros países, sem precisar fazer investimentos para sua construção; as flexibilizações da legislação trabalhista, forma contemporânea da nova escravidão; a tentativa de destruição dos sistemas de previdência pública, esse paroxismo da fome dos lobos rentistas; o individualismo exacerbado e uma série de outras disposições do salve-se quem puder – obviamente, salvem-se os mais ricos e aqueles que tiverem poder e recursos políticos e econômicos para tirar uma casquinha do que sobrar enquanto é tempo.

Este Príncipe Boçal não está sozinho e nem se encarna somente na pessoa do governante. Ele é a expressão também do “homem-massa”, acepção formulada por Ortega y Gasset, para quem esse homem é “previamente esvaziado de sua própria história, sem entranhas de passado e, por isso mesmo, dócil a todas as disciplinas chamadas ‘internacionais’”. Vale a pena conferir essa reflexão numa das obras mais famosas deste pensador, “A rebelião das massas” (Campinas: Vide Editorial, 2016).

A boçalidade não é só a forma caricatural da ignorância, da bestialidade ou da mentira, ou ainda da falta de cultura. Os imbecis que tomaram o poder têm a “inteligência” exata para o perfil de fantoches e despachantes de luxo do grande Capital financeiro – inteligência essa siliconada pela legitimidade do voto popular. A etiqueta cai como luva nas mãos dessa gente podre em diferentes quadrantes do mundo.

Alguns aparentam educação e residual equipamento intelectual na cabeça, outros são mais escrachados e de uma burrice despudorada que envergonha o pessoal de qualquer media training de fundo de quintal. Todos têm, porém, a característica comum de assumirem-se como adeptos dos valores e visões de mundo da direita mais reacionária e retrógrada que a história dos “príncipes” já registrou.

Evidentemente, a boçalidade e sua tentativa hegemônica não são nada casuais, pois encarnam a necessidade de seu próprio mecanismo para fazer funcionar a grande máquina da barbárie. Esta, por sua vez, se manifesta no estado de exceção instituído como normalidade do mundo contemporâneo, com suas externalidades eloquentes do aumento e do acirramento dos diversos problemas da sociedade.

Estes problemas são muitos para serem listados aqui, bastando alguns mais cruciais: pobreza em escala vertiginosa, aumento da violência nas ruas, imbecilização das pessoas de todas as classes sociais, atuação de máfias de todos os tipos, tráfico de armas, de gente e de drogas, produção de alimentos envenenados, indústria de remédios desnecessários, degradação do meio ambiente, guerras também desnecessárias, bem como a extrema produção de doenças, alta incidência de suicídio entre jovens, os diversos tipos de terrorismo, além do mais grave de todos, que é o terrorismo de estado, os processos políticos e econômicos erráticos, a ausência de projeto coletivo de sociedade, enfim, o caos.

Ou alguém ainda têm dúvida de que vivemos o caos? O caos escondido pelos slides e os “coffee breaks” de seminários e congressos de especialistas falando em técnicas modernas de administração e controle para correção de rumos.

Se no decorrer dos três primeiros séculos da modernidade, o bizarro “direito divino dos reis” foi sucedido por outro tipo de absolutismo, que tinha pelo menos alguma liturgia com outras etiquetas, a exemplo dos déspotas esclarecidos preocupados com “progresso”, hoje o Príncipe Boçal quase nada sabe sobre o passado e o presente, confundindo progresso com terra devastada. Este imbecilóide deslumbrado com o poder tira “self” com celebridades, ri da desgraça alheia, incentiva a violência contra os mais fracos, gagueja, claro, para falar sobre o que não entende, não compreende os símbolos da cultura e sua dinâmica, nada entende e nem precisa entender de economia.

Talvez, inconscientemente, por sua ignorância, flagra-se perplexo diante do espelho e se pergunta quando está sozinho: mas que cabaça é essa em que eu me meti? O pior de tudo é o gostinho dessa gente de querer permanecer como os efeitos do cachimbo que entorta a boca – e o trabalho que dá para tirá-los do poder.

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