O chauvinismo travestido de patriotismo

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Aquilo que Bolsonaro, Paulo Guedes e, agora por último, Rodrigo Maia, têm chamado repetidamente de patriotismo, chama-se, na verdade, chauvinismo.

O chauvinismo consiste na defesa exacerbada de uma causa ou valor, dando a ela o virtuoso lugar de salvação, ciência inconteste e sacralização irrefutável, ao mesmo tempo que destina ao contraditório o endereço da discórdia, do atraso e da vilania. Tem muito de cafonice e exagero nas campanhas nacionalistas do governo vigente. Tem cara, cor e cheiro de populismo. São, antes de tudo, herdeiras da memória militar de ame-o ou deixe-o. Trata-se de uma estratégia, planejada ou não, de criminalizar o oposto e exercer controle no direito de arbítrio das pessoas. Com o chauvinismo, se petrifica um contexto de: se não está comigo, não está para o Brasil. Ou então, só não apoia esta causa quem quer o país parado. E por fim, estamos no mesmo barco, tem que torcer para dar certo. Ambas são afirmações que condicionam o pensamento alienado dos apoiadores do governo atual e consideram qualquer opção que escape a essa retórica uma traição a pátria ou um pacto com o sofrimento.

A distância entre o patriotismo e o chauvinismo fica evidente na bajulação constrangedora do presidente brasileiro ao Trump, na despreocupação com a natureza e seus ícones nacionais (especialmente quando morrem) e no esforço constante de negação da história nacional e construção de uma verdade de conveniência. Esses três elementos deixam o chauvinismo do governo visível, pois as práticas não dão sustentabilidade ao falso discurso patriótico. Todavia, o chauvinismo aplicado como projeto de país tem um objetivo muito maior. Está em sintonia com a corrente global de naturalização ou enraizamento do liberalismo como via de mão única para o progresso econômico. Um breve passeio pela história ajuda a compreender isso.

A Paz de Vestefália, em 1648, deu ao Estado o status de protetor dos interesses da nação. Passou-se a privilegiar a soberania do país, a preservação das fronteiras e o poder do Estado de garantir a segurança e bem-estar de seus indivíduos. É na propagação dessas funções, que vieram a ser reforçadas posteriormente com o Congresso de Viena e no Tratado de Versalhes, que cresce o sentimento de pertencimento a uma pátria e por conseguinte o patriotismo. De lá para cá, as funções do Estado como fiador dos indivíduos de um país tornaram-se entrelaçadas com a própria significância de existência do Estado. Nessa lógica, o natural é que os governantes, porta-vozes do interesse do Estado, tenham a obrigação de proteger o patrimônio nacional, a soberania e seus indivíduos acima de qualquer outra coisa.

Acontece que nesse cenário, o neoliberalismo pós globalização não têm espaço. Os principais agentes interessados na política neoliberal são apátridas. Os investidores e rentistas do mercado financeiro circulam com seus dólares pela conveniência dos melhores juros, do melhor ambiente para ampliação do lucro. Inexiste qualquer relação entre a bandeira, os brasões, os interesses de um país e a identidade nacional para os representantes do mercado financeiro. Tudo se resume em aproveitar a oportunidade de momento para ampliar suas riquezas. Essa dinâmica neoliberal é incompatível com a noção de patriotismo. Pois se o Estado tem como pressuposto defender os interesses do seu país e proteger sua nação, manter o máximo possível as riquezas do seu país com ele próprio é um princípio inegociável. Assim, a política neoliberal sempre encontrou obstáculos no exercício direto ao poder por vias democráticas, pois é impopular em sua essência. Se contentava com uma atuação metaforicamente clandestina exercida por meio do financiamento de campanhas.

Entretanto, nos arredores de 1970 o palco para os neoliberais assumirem o comando começa a ser montando. Com o desenho final da guerra fria a noção de bem-estar, prerrogativa máxima da existência do Estado, foi confundida com o potencial de consumo individual. Felicidade e consumo se misturaram em uma química perigosa, pois a escassez dos recursos torna o consumo limitado e a felicidade uma busca que para muitos pode ser inalcançável. Com isso, o Estado eficiente passou a ser aquele capaz de garantir um potencial de consumo individual que assegure determinado nível de vida e no pacote a felicidade.

Todavia, a crise de 2008 afetou o consumo das famílias e trouxe junto o desemprego, a fome e a perda do potencial de compra foi compilado a perda da felicidade. Foi nesse contexto que o neoliberalismo teve sua oportunidade política. Pois atribuiu a uma ineficiência do Estado a culpa da crise. A corrupção, nepotismo e concentração de renda, alguns dos pecados que acompanham o Estado desde seu surgimento, foram potencializados a protagonistas da crise. E ao tornar o Estado réu da crise, o neoliberalismo se colocou como o herói. Estado mínimo, meritocracia, desburocratização, desregulamentação, livre-mercado, soluções que jamais teriam espaço no debate político foram os termos e atalhos utilizados pelos neoliberais para compor o escopo do discurso chauvinista de nação sem crise. Aquele que se opõe a esse conjunto é tido como anti-pátria, o que na verdade é apenas ante causa liberal. O patriotismo travestido de chauvinismo deu aos liberais a possibilidade de assumir o poder sem a necessidade de instalação de ditaduras, já que conseguiram, sem apresentar resultados, apenas na falha dos outros e na expectativa do progresso, impor uma corrente de pensamento sem concorrência que a ameace.

Tirar as prerrogativas do Estado que é o único que tem forças para tutelar os indivíduos e garantir os direitos assistenciais básicos (especialmente para os grupos mais vulneráveis) é colocar cidadãos desarmados para lutar contra um poder quase que militar das grandes corporações privadas que aliciam políticos, a grande mídia que depende dos patrocínios e até do processo educacional. Isso deixa o território livre para os controladores do mercado privatizarem, eliminarem direitos trabalhistas e assumirem tudo que pode servir como instrumento do Estado para recuperação da própria crise.