Pacto de infâmia contra o povo e a favor dos bancos

O projeto de lei que o governo Bolsonaro quer impor aos Estados e Municípios é uma tentativa ditatorial de subordinar toda a República, e afinal todo o povo brasileiro, aos abutres do capital financeiro intermediados pelo Governo central. Sem poder investir, já que suas receitas estão em grande parte comprometidas com o serviço de dívidas impagáveis à União, e, sem receber imensas quantias que a União lhes deve, os Estados só poderão recorrer a crédito para pagar juros e amortizações ao Governo central e ao sistema bancário. Mais nada.
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O projeto de lei que o governo Bolsonaro quer impor aos Estados e Municípios é uma tentativa ditatorial de subordinar toda a República, e afinal todo o povo brasileiro, aos abutres do capital financeiro intermediados pelo Governo central. Sem poder investir, já que suas receitas estão em grande parte comprometidas com o serviço de dívidas impagáveis à União, e, sem receber imensas quantias que a União lhes deve, os Estados só poderão recorrer a crédito para pagar juros e amortizações ao Governo central e ao sistema bancário. Mais nada.

É um acinte, um tapa na cara de governadores e prefeitos, todos, privados de autonomia, tratados como gerentes de massa falida que teriam de sujeitar cada um dos seus atos à aprovação de funcionários de segundo escalão do Ministério da Economia. Eles ditarão o que pode e o que não pode ser feito, de acordo com o chamado Plano Mansueto, ou Pacto Federativo, apresentado como meio para ajudar Estados e Municípios a superarem a crise fiscal, mas escondendo o propósito real de liquidar com a autonomia deles e generalizar a privatização de monopólios territoriais, independentemente da vontade do povo.

Para vender a alma ao diabo, os governadores receberão migalhas dentro do Plano de Promoção do Equilíbrio Fiscal, vigiado pelo Programa de Acompanhamento e Transparência Fiscal. Esses nomes de planos e programas não dizem nada. Escondem a verdadeira intenção, na forma do que chamam “um conjunto de metas e de compromissos pactuados entre a União e os Estados, o Distrito Federal ou os Municípios, com o objetivo de promover o equilíbrio fiscal e a melhoria das respectivas capacidades de pagamento”.

Guardem isso, “melhorias das respectivas capacidades de pagamento!” É o que na verdade interessa a este Governo, fazer dívida para pagar dívida, agora também no plano estadual. Na medida em que se sujeitem às ordens da União, os Estados receberão autorização para fazer dívidas. Como adolescentes pedindo dinheiro aos pais, Guedes e Mansueto. Mas qual é a contrapartida dos Estados, ou seja, suas “metas e compromissos”, que devem ser postas em lei “ou conjunto de leis?”:

a) “autorização para privatização de empresas dos setores financeiro, de energia, de saneamento ou de gás, com vistas à utilização dos recursos para quitação de passivos”;

b) “instituição de regras e mecanismos para limitar o crescimento anual das despesas correntes à variação anual do IPCA ou à variação anual da receita corrente líquida”;

c) “contratação dos serviços de saneamento básico pelo regime de concessão e, no caso de já haver companhia de saneamento, a adoção do seu processo de desestatização”;

d) “revisão do regime jurídico único dos servidores da administração pública direta, autárquica e fundacional para suprimir os benefícios ou as vantagens não previstas no regime jurídico único dos servidores públicos da União”.

O restante do projeto se destina a criar e assegurar os mecanismos de aplicação dele e, como regra geral, a garantir que o setor público estadual não tome créditos para investir ou para pagar despesas correntes, independentemente da situação econômica do país. A dívida, sim, esta é sagrada. Mas a União também conta. O Art. 23 veda textualmente as contratações de “operações de crédito, ressalvadas as destinadas ao pagamento da dívida mobiliária e as que visem à redução das despesas com pessoal “. Por aí estamos sabendo que a autorização que o Executivo pediu e obteve do Congresso para emitir R$ 248 bilhões em títulos – ou seja, aumento da dívida pública – serve exclusivamente para pagar juros.

Minha dúvida é a seguinte: será que os governadores estão sendo informados dessa infâmia? Será que suas assessorias de Fazenda e Planejamento se deram conta de que, se esse projeto for levado avante, os Estados e seus governadores não passarão de gerentes minguados, incapazes de dar conta dos compromissos constitucionais com educação, saúde e segurança, na medida em que os orçamentos também serão restringidos? Por onde anda o espírito de Vargas, que por muito menos se uniu a Minas e Paraíba para fazer uma revolução quando o poder central usurpou o resultado de uma eleição?

Os governadores do Nordeste estão se articulando, primeiro para rejeitar o projeto da reforma da Previdência, que é outro arbítrio de centralização e destruição da Federação. São Paulo tem uma postura absolutamente egoísta, porque se beneficia de uma situação financeira melhor. Mas os outros Estados do Leste e do Sul, entre os quais Minas Gerais e Rio Grande do Sul, virtualmente falidos? Se pensam que essa patacoada de Mansueto e Guedes vai resolver a vida deles estão muito enganados. Diante da escala das dívidas estaduais, os R$ 40 bilhões de mais dívida prometidos desaparecerão como fumaça no curto prazo, e se agregarão permanentemente como mais dívida no longo.

Entretanto, há saída. Já mostrei nesse blog que a dívida dos Estados imposta pelo Governo federal em 1998 é nula. Era inicialmente de R$ 111 bilhões, foram pagos até 2016 cerca de R$ 300 bilhões e restam a pagar inacreditáveis R$ 540 bilhões. Pelas minhas contas, essa dívida deve ser reconhecida como nula e os R$ 300 bilhões pagos indevidamente devem ser restituídos aos Estados. Mais do que isso, a União deve aos Estados, por conta da Lei Kandir, cerca de R$ 600 bilhões. A situação das relações financeiras entre Estados e União deve ser invertida: em vez de dever à União, os Estados têm créditos de quase R$ 1 trilhão com ela.

Mas há um fator ainda mais importante. A crise financeira dos Estados, assim como a crise fiscal da União, deve-se também à recessão prolongada, que corroeu suas receitas tributárias. Só existe uma política racional para promover a recuperação da receita, da economia e do emprego: a ampliação dos gastos públicos, inclusive a crédito (títulos públicos). Em recessão, com grande capacidade ociosa na economia, não há risco de inflação com a emissão de dívida. Também não há risco cambial, na medida em que ainda temos quase 400 bilhões de dólares de reserva. Um programa saudável seria retomar investimentos e gastos correntes seletivos nos Estados (educação, saúde e segurança) financiados por aquele R$ 1 trilhão, escalonados, que o Governo deve ao Nordeste e ao Brasil. Afinal, um quarto disso, sem nenhum proveito, ele já pediu ao Congresso.

Finalmente, o ponto mais importante, sequer sinalizado no projeto Mansueto: ele é extremamente contracionista. Se for aprovado, levaria a economia e o emprego a um poço ainda mais fundo que o atual. Quem nos pode salvar disso são governadores e Congresso, em nome do povo. Deputados e senadores deram uma fantástica demonstração de independência na votação da lei contra o Abuso de Autoridade. É hora agora de uma rebelião parlamentar contra a tecnocracia sem voto que pretende escravizar os Estados rumo à financeirização completa e em favor dos abutres do sistema financeiro. Não basta rejeitar o projeto, porém. É preciso apresentar uma alternativa. O presidente do Senado, David Alcolumbre, que já lidera uma comissão que estuda a revisão do pacto federativo, pode abrir caminho para isso.