Sobre a ruptura no Partido Trabalhista: uma análise de conjuntura a partir do Reino Unido

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O líder do Partido Trabalhista do Reino Unido, Jeremy Corbyn
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O Partido Trabalhista do Reino Unido vivenciou seu maior racha desde os anos 1980 nesta semana, quando sete deputados anunciaram sua desfiliação do partido e a criação do autointitulado Grupo Independente (em inglês, “Independent Group”). O episódio faz lembrar a ruptura que levou à criação do Partido Social Democrata, um partido centrista criado por dissidentes do Partido Trabalhista em 1981 que, posteriormente, se fundiu com o Partido Liberal em 1988, formando o Partido Liberal Democrata.

Duas razões essenciais para a recente ruptura foram apontadas pelos parlamentares, que pertencem à ala direitista do Partido Trabalhista, identificada com o New Labour de Tony Blair: um desacordo sobre a posição do partido em relação ao Brexit e uma ridícula acusação de antissemitismo contra Jeremy Corbyn. Este artigo discutirá os componentes mais importantes da ruptura – a correlação de forças dentro do Partido Trabalhista e o Brexit – e fará uma reflexão final sobre a viabilidade de um projeto “centrista” na política britânica atual.

O Partido Trabalhista e a nova hegemonia de Jeremy Corbyn

A explicação fundamental para o racha reside na percepção, por parte da direita trabalhista britânica, de que a liderança de Jeremy Corbyn chegou para ficar. O atual líder do Partido Trabalhista chegou à liderança em 2015 e, desde então, tem gerado um aumento maciço no número de filiações ao partido, que saltou de 190.000 em maio de 2015 para 552.000 em janeiro de 2018. Após ganhar as eleições para a liderança pela segunda vez em 2016 e obter resultados surpreendentemente positivos nas eleições gerais do Reino Unido em 2017, a legitimidade de Jeremy Corbyn como líder do partido se consolidou. No momento, não há ameaças reais à sua liderança. As maiorias asseguradas pelos novos filiados, que majoritariamente o apoiam, garantem uma hegemonia sustentável nos próximos anos. Além disso, se as eleições fossem hoje, as chances de uma vitória do líder trabalhista seriam reais. Conforme mostram as pesquisas de opinião, muitas das políticas públicas propostas por Corbyn, tais como a nacionalização do sistema ferroviário, são apoiadas pela maioria da população.

As divergências políticas entre o New Labour e o setor ligado a Jeremy Corbyn são consideráveis. O corbynismo retoma a tradição trabalhista da esquerda britânica que liderou o partido nos anos 1970, a qual teve Tony Benn como sua principal liderança. Trata-se de um setor que busca alternativas ao neoliberalismo, o fim da austeridade, a nacionalização dos serviços públicos e formas alternativas de propriedade das empresas pelos trabalhadores.

O setor mais próximo de Tony Blair, por sua vez, ganhou espaço nos anos 1990, à margem do crescimento vinculado ao capital financeiro no Reino Unido. Este setor se identifica com políticas neoliberais, tais como privatizações, austeridade e subtaxação das grandes fortunas. Com efeito, há no grupo de dissidentes alguns parlamentares que se opõem abertamente à política de estatizações do Partido Trabalhista, tais como a dos serviços sanitários e correios.

Outra diferença fundamental entre o New Labour e o Partido Trabalhista liderado por Jeremy Corbyn, a qual tem sido pouco comentada na mídia, é uma profunda divergência em relação à participação do Reino Unido em guerras imperialistas. Enquanto Corbyn militou ativamente em oposição à guerra contra o Iraque, todos os deputados dissidentes que se encontravam no parlamento em 2003 votaram a favor. A posição de Corbyn naquele momento, coerente com seus princípios, representa hoje uma das principais razões de sua popularidade. Atualmente, todos os sete dissidentes criticam abertamente a reticência de Jeremy Corbyn em relação às políticas de intervenção militar britânicas. Não é de se estranhar, portanto, que as acusações de antissemitismo contra o líder trabalhista se relacionem, na verdade, com divergências sobre a política do Reino Unido em relação à questão palestina e ao Oriente Médio em geral.

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O líder do Partido Trabalhista do Reino Unido, Jeremy Corbyn

Devido a essas divergências profundas, os rumores sobre o racha no partido já corriam há meses, inclusive anos. Há setores do poder econômico interessados em financiar um partido dito “de centro” com o intuito de evitar a queda do governo de Theresa May, mesmo em caso de perda de apoio do Partido Unionista Democrático da Irlanda do Norte no parlamento, e debilitar a capacidade do Partido Trabalhista de ganhar as próximas eleições gerais em 2022.

Ao mesmo tempo, há deputados do New Labour relutantes em se retirar do partido, preocupados diante da possibilidade de perder fontes de financiamento e seu assento no parlamento. No entanto, é bem provável que mais parlamentares do Partido Trabalhista rumem para o grupo dissidente antes das próximas eleições gerais em 2022, pressionados pelo fato de que as bases do partido, cada vez mais controladas por setores ligados a Corbyn, procurarão substituir os candidatos de seus distritos por representantes de esquerda.

Panorama da política britânica em relação ao Brexit

O Reino Unido sempre foi, e continua sendo, relutante em relação ao projeto europeu. Ele somente se integrou à Comunidade Europeia em 1973, quase uma década após sua fundação. O euroceticismo atravessa todo o espectro político britânico, da direita à esquerda. São famosos os discursos de Tony Benn contra a participação do Reino Unido na União Europeia (UE), fundados em argumentos de democracia de base e soberania popular. No outro lado do espectro político, ficará para a história a campanha a favor do Brexit, liderada por lideranças da direita britânica como Boris Johnson e Nigel Farage.

Apesar dessa tendência, a característica fundamental do Brexit é que, desde o princípio, as opiniões sobre o assunto dividiram tanto trabalhistas quanto conservadores. Durante a campanha sobre o referendo, lideranças de ambos os partidos tomaram posições diversas. Após o resultado da votação, David Cameron, que foi a favor da permanência na UE, renunciou ao cargo de primeiro-ministro para que Theresa May assumisse a liderança do governo. Embora tenha feito campanha pela permanência na UE, a primeira-ministra se comprometeu a levar adiante o Brexit no momento de assumir o cargo. O atual gabinete, portanto, é composto por membros conservadores que fizeram campanha para ambos os lados – o que, muitas vezes, é motivo de crítica dos apoiadores mais incisivos do Brexit, que frequentemente acusam os europeístas de sabotarem o processo.

Assim como os conservadores, o Partido Trabalhista não tomou posição perante o referendo. Após os resultados, no entanto, a postura adotada pela liderança de Jeremy Corbyn tem sido a de que os resultados da votação devem ser respeitados e, portanto, de que o Brexit deve ser levado adiante. Essa política é alvo de críticas por parte dos parlamentares dissidentes, que defendem uma guinada em direção à permanência na UE.

Embora 48 por cento da população tenha votado pela permanência, essa faixa do eleitorado não encontra hoje representação em nenhum partido. É esse nicho que os dito “centristas” esperam conquistar com uma plataforma que seja abertamente europeísta, capaz de atrair tanto trabalhistas do New Labour quanto conservadores para suas fileiras. Com efeito, um dia após o racha no Partido Trabalhista, três parlamentares do Partido Conservador anunciaram que se juntarão ao grupo de dissidentes. Mas será que isso é suficiente para conquistar o eleitorado?

Reflexões sobre a atual viabilidade de um partido centrista no Reino Unido

Não há consenso entre os analistas sobre as chances de sucesso do novo grupo em sua empreitada pela redefinição da política partidária britânica, como ele pretende claramente fazer. Alguns apostam no naufrágio dos centristas no primeiro teste eleitoral que surgir. A aposta do grupo, no entanto, é numa falência dos partidos políticos tradicionais, de maneira similar à que levou Emmanuel Macron à presidência da França. No entanto, a direção dos rumos políticos no Reino Unido, bem como em várias partes do mundo, tem caminhado para a radicalização à esquerda e à direita. Um novo centro pode não ser necessariamente o que o eleitorado do país almeja.

Com efeito, o modelo de acumulação financeira que levou o New Labour ao poder nos anos 1990 entrou em evidente colapso com a Crise Financeira Global de 2008, que levou ao resgate do sistema financeiro com fundos públicos e desencadeou uma exacerbação do conflito distributivo no Reino Unido – tudo isso em pleno governo do New Labour de Gordon Brown. As políticas de austeridade nas quais esse processo se traduziu, aprofundadas com a chegada dos conservadores ao governo em 2010, levaram à atual estagnação da renda e do crescimento do país.

Este é o cenário ideal para a polarização política, com um Partido Trabalhista à esquerda que propõe políticas distributivistas e um Partido Conservador à direita que coloca a culpa pela estagnação econômica na imigração. A criação de um partido ao estilo da socialdemocracia da Europa continental, que não propõe nenhuma mudança estrutural e determina seu discurso ao redor da questão da permanência na UE, representa uma aposta arriscada no atual cenário.

Por Karina Patrício, jurista, mestre em Relações Internacionais pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Argentina) e doutoranda em Direito na Universidade de Durham (Reino Unido). Ela é membro do Partido Democrático Trabalhista (PDT) no Brasil; e Harry Cross, membro do Partido Trabalhista do Reino Unido. Ele é membro da Comissão Consultiva de Economia do Fórum Nacional de Políticas Públicas do partido.