A estratégia da polarização: da indução calculada ao isolamento político

Militante pró-Bolsonaro discute com apoiadora do Psol | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo. A estratégia da polarização: da indução calculada ao isolamento político
Militante pró-Bolsonaro discute com apoiadora do Psol | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo
Botão Siga o Disparada no Google News

O segundo turno da eleição presidencial de 2018 representa o ápice de uma estratégia, não apenas eleitoral, adotada pelos setores hegemônicos da esquerda brasileira desde os primeiros rumores sobre um possível “golpe” contra a presidente Dilma Rousseff, ainda no começo de seu segundo mandato, em 2015: apostar na polarização, primeiro entre “golpistas” e “não-golpistas”, agora entre “democratas” e “fascistas”. A conjugação do rebuliço das manifestações de junho de 2013 com a apertada vitória eleitoral de 2014 forjaram as bases desta estratégia, assentada num sentimento de que o Partido dos Trabalhadores, após anos governando via construção de acordos parlamentares de governabilidade com amplas e heterogêneas forças políticas, poderia, sim, manter ou fazer avançar seu projeto para além das ditas alianças, com base numa suposta “mobilização das massas”, contrapostas aos interesses dos setores “golpistas”.

Num primeiro momento, Lula postou-se contra esta estratégia, substanciada nos radicalizados atos do “Não vai ter golpe”, relativamente esvaziados se comparados às marchas do pato amarelo da FIESP. O eterno líder petista tentou frear os ímpetos das bases de seu partido, ávidas pelo confronto, dialogando com setores do PMDB, do conjunto do “centrão” e do mercado financeiro para rearticular a sustentação do governo Dilma. Engolido por setores de seu próprio partido, que preferiram apostar na polarização (ainda que operando um estrondoso estelionato eleitoral, desmobilizador de suas bases, com a nomeação de Joaquim Levy para a Fazenda), na defesa da Lava-Jato contra a “corrupção” (sem perceber que esta procedia, em nome de interesses estrangeiros, a ruína de empresas de capital nacional, fossem privadas ou estatais) e na entrega da cabeça de Eduardo Cunha (e de outros virtuais aliados político-parlamentares) ao consórcio grande mídia-judiciário, Lula já passou a articular o pós-impeachment, jogando todas suas fichas nas eleições de 2018. A sangria da irresponsável e entreguista gestão de Temer seria o suficiente para consolidar na população um sentimento da necessidade de volta aos braços de Lula, que representaria o retorno do emprego, do crescimento econômico e a manutenção dos programas sociais. Não apenas no povo reapareceria este sentimento, mas também em importante parcelas da indústria nacional e do próprio mercado financeiro, insatisfeitos com a instabilidade política, social e econômica do país.

Como bem se percebe, a estratégia de Lula foi, até então, essencialmente distinta da utilizada por parte da direção e das bases petistas no período pré-golpe: retomar, a partir de seu potencial político e eleitoral frente aos setores menos favorecidos da sociedade, as alianças com os partidos do centro e da centro-direita, os vínculos com o mercado financeiro e com as frações das elites, frustrados com os rumos do governo Temer, e céticos quanto à uma eventual continuidade da “Ponte para o Futuro” com Alckmin. Porém, há de se perceber que a prisão de Lula demonstrou a ambiguidade de sua estratégia: ao mesmo tempo em que apregoava sua amplitude política e eleitoral, se despedia de sua liberdade diante de poucos milhares de militantes orgânicos da base petista, em São Bernardo do Campo, prenunciando um isolamento já demonstrado durante as marchas “contra o golpe”, e que viria a se repetir no enfadonho segundo turno que por ora enfrentamos.

Da cadeia, Lula deu prosseguimento à sua estratégia, agora já tomada pela dubiedade de, ao mesmo tempo em que priorizava ampliar seus apoios políticos com setores do centro, da centro-direita e das elites ter como seus representantes nas ruas, nas redes sociais e no parlamento, uma militância radicalizado pelo discurso do combate aos “golpistas” e “fascistas”, despida das cores do Brasil e alinhada com o doentio multiculturalismo, símbolo da decadência ideológica de nossas “esquerdas” e bandeira inequívoca dos tentáculos da Fundação Ford e afins. Isolando as alternativas de centro-esquerda também capazes de dialogar ou ampliar suas alianças para com os setores centristas, casos de Ciro Gomes (sabotado em sua busca de alianças com o PSB, o centrão e o PCdoB) e Aldo Rebelo (vaiado de forma uníssona pela inconsequente militância petista em evento contra a prisão de Lula em Curitiba), a ascensão de Lula nas pesquisas parecia consagrar sua estratégia.

O xadrez lulista seria coroado com a opção por Fernando Haddad, o mais moderado dentre os petistas: uspiano, próximo a setores do PSDB e do mercado financeiro, um democrata-liberal por natureza, capaz de unificar amplos segmentos da sociedade contra a ameaça de um eventual candidato despreparado, um Jair Bolsonaro até então desprovido de expectativas de vitória no segundo turno e tido pelos petistas como seu adversário ideal, incapaz de ampliar suas alianças e sua votação. E aí reside a grande contradição da estratégia petista: se por um lado preparava sua candidatura para ampliar as alianças ao centro, com um perfil moderado e capaz de unificar o país, por outro insuflava sua militância a polarizar as ruas e as redes sociais contra o “fascismo”, o adversário escolhido para a batalha final do segundo turno.

A descontrolada polarização política e social, decorrente deste roteiro, tragou não apenas as candidaturas alheias aos dois polos, com exceção da expressiva votação do politicamente isolado Ciro Gomes, mas também a própria capacidade do PT ampliar ao centro suas alianças, tanto no campo político-eleitoral quanto social. A pretensa frente ampla contra o fascismo parece tomar outros contornos, de uma frente ampla contra o petismo. Esta frente não congrega apenas os setores da classe média há anos domados pelos discursos contra a “corrupção”, mas amplos setores refratários não necessariamente ao programa de governo dos petistas, mas ao que suas lideranças, por um lado, ou sua radicalizada militância, por outro, cada vez mais parece representar: a primeira um grande conglomerado dos interesses da “política” e dos “políticos”, que no ideário popular (tomada por anos de ofensiva do conglomerado mídia-judiciário) aparecem como os grandes vilões brasileiros, a segunda um rebanho de radicais incapazes de dialogar com os que pensam diferentes, e excessivamente centrados em pautas importadas dos setores liberais e esquerdistas do chamado “primeiro mundo”, contrastantes com a realidade do povo brasileiro e mais adequadas às campanhas eleitorais de DCEs ou pela presidência de ONGs irlandesas ou dinamarquesas. O isolamento passou a ser a regra, e por mais que o PT por ora acuse Ciro e Cid Gomes de serem os grandes responsáveis por este fenômeno, ao não lhe concederem palanque, há de ser perceber que praticamente nenhum setor político alheios às esquerdas aderiu com maior afinco à chamada da “frente ampla” no segundo turno. Se em 1989 Lula, cego pelo sectarismo e esquerdismo petista, negava o apoio de Ulysses Guimarães contra Collor, hoje este mesmo Lula implora, junto aos seus comissários, pelo apoio do centro e da direita contra Bolsonaro, mas apenas consegue colher em seu palanque o apoio de sua corrente externa, representada por Guilherme Boulos.

Infelizmente, a menos que a assustada Rede Globo crie um fato político capaz de minar, nos últimos dias, a ascendente popularidade de Bolsonaro, a estratégia de Lula parece já ter sua sentença: vitória dos que pela sua política foram insuflados, os ditos “fascistas”, que, diferentemente do que apregoa a militância petista, constituem parte desta grande aliança iminentemente vencedora, mas de forma alguma a sua totalidade e tampouco seu eleitorado, que em grande parcela já foi, também, eleitorado do próprio Lula. Distintamente do que tem sido apregoado, a resistência ao economicamente liberal e politicamente autoritário governo de Bolsonaro não deve partir da dita palavra de ordem “antifascista”, mas sim do fortalecimento de um campo político capaz de romper esta apodrecida polarização, que nos leva hoje à beira do abismo e retira do centro da agenda política as questões prementes para nosso futuro: a retomada do crescimento econômico, com geração de empregos e distribuição de renda, caminho apenas possível pela pacificação política do país, a ser construída, também, com setores que vierem a se desgarrar ou se frustrar com as aventuras do entreguista governo de Bolsonaro que por ora nos ronda.

A aposta na polarização em torno dos costumes, das posições ideológicas e das tomadas de decisões diante de eventos como o impeachment de 2016 custaram caro, nos levando a este caótico cenário eleitoral. Manter esta estratégia após as eleições, tendo como seu eixo a dita frente “antifascista” tende a nos custar ainda mais. Ampliar as alianças, colocar o crescimento econômico, a grandeza do Brasil e de nosso povo e a democracia no centro da questão nacional ou se isolar num ridículo discurso completamente alheio à realidade de nosso povo (hoje tomado por sentimentos difusos contra a política, o multiculturalismo e a corrupção)? Que tenhamos sabedoria para passar longe deste segundo caminho, que pode custar nosso futuro e até mesmo nossas vidas.

Tiago Nogara
Graduado em Ciências Sociais, foi diretor de relações institucionais e diretor de relações internacionais da União Nacional dos Estudantes (UNE), entre 2015 e 2018