O populismo de Boulos e a reconstrução da Hipótese Comunista: Prestes vai voltar

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Já argumentei em outro momento que Boulos representa uma tentativa de reproduzir no Brasil o populismo do Podemos na Espanha e do Syriza na Grécia. Isso não é uma ofensa, e sim um elogio, mesmo diante dos limites apontados e de críticas que se possa fazer ao líder do MTST. Mas agora quero chamar atenção para um panorama mais amplo da ascensão do populismo de Boulos na reorganização da esquerda radical brasileira, inclusive dos partidos nanicos como PCB, UP, PSTU, bem como das correntes do próprio PSOL.

Além disso, quero apontar o local de Boulos na reconstrução no Brasil do que Alain Badiou chama de “Hipótese Comunista”, e para tanto, fazer uma comparação histórica polêmica. Não exatamente de Boulos, mas do fenômeno político-social que ele está expressando no presente momento. A ascensão do líder do MTST na esquerda brasileira cumpre o papel de fazer voltar a existir a posição de Luís Carlos Prestes e do movimento comunista brasileiro durante o chamado “ciclo do populismo” (1930 a 1964).

Essa comparação pode parecer exageradamente elogiosa a Boulos, e é. Minhas críticas, como a participação de Boulos na desestabilização do governo Dilma, ou de colegas, como a aproximação do psolista com o capital financeiro, já foram suficientemente registradas em outros momentos. Aliás, muitos acusam que Boulos quer ser o novo Lula, o que faz sentido. Mas Lula ainda não morreu, e o lulismo não está a disposição de Boulos para torná-lo apenas uma repetição farsesca do neoliberalismo petista. Portanto, buscarei demonstrar que o líder sem-teto pode ser mais radical que o líder operário, ainda que mais por imposição da conjuntura histórica de declínio do neoliberalismo, do que por suas aptidões pessoais.

Assim sendo, comparar Boulos com Prestes pode parecer despropositado, mas essa correlação histórica servirá aqui apenas como argumento ilustrativo da estruturação do sistema político brasileiro baseado em uma aproximação da função geral de cada sujeito na totalidade da conjuntura do espectro político, e não em seus detalhamentos subjetivos e ideológicos.

O Projeto Nacional de Desenvolvimento e a Hipótese Comunista no Brasil

A Revolução de 1930 que levou Getulio Vargas ao poder foi o ponto culminante de um longo período de transição do capitalismo mundial e brasileiro. A disputa interimperialista da Primeira Guerra Mundial e a crise de 1929 permitiram ao Brasil aproveitar a “brecha imperialista” para iniciar sua Revolução Nacional, seu Projeto Nacional de Desenvolvimento.

O Brasil iniciou a ruptura do “sentido da colonização” explicado por Caio Prado Jr., ou seja, da economia exportadora de produtos primários, e transitou para a industrialização por substituição de importações. Isso não foi realizado por uma “burguesia nacional”, pelo contrário, foi protagonizado por uma dissidência oligárquica, principalmente do Rio Grande do Sul, de ideologia positivista-industrialista e articulada militarmente nas classes médias do tenentismo.

Luís Carlos Prestes foi um dos maiores chefes militares desse período. A Coluna Miguel Costa-Prestes marchou pelo interior do país de 1924 a 1927 sem nunca ter sido derrotada pelas forças da República Velha. Vargas convidou Prestes para ser seu comandante militar no movimento de 1930, mas o ex-capitão do Exército recusou para se juntar ao Partido Comunista do Brasil (PCB). Prestes vai para a União Soviética e volta escoltado por uma espiã alemã do Comintern (a III Internacional Comunista fundada por Lênin) para fazer a sua própria revolução em 1935 contra Getulio. A tragédia que se segue todos conhecem, a espiã comunista, enviada de Moscou para fazer a segurança pessoal de Prestes, torna-se sua esposa, e é deportada grávida para seu país de origem, onde morre em um campo de concentração.

Mesmo assim, Prestes fica contra o golpe dos militares que traem Vargas em 1945 com apoio dos EUA. O líder tenentista reconheceu que apesar do sufocamento da revolução comunista, Vargas defendeu o Brasil e o povo brasileiro ao criar a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), a Companhia Vale do Rio Doce, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), bem como combateu os fascistas do Integralismo que também tentaram derrubá-lo, e o próprio nazifascismo na Europa com a Força Expedicionária Brasileira (FEB). Posteriormente ainda criaria a Petrobras, a Eletrobras, o BNDES, e diversas outras instituições cruciais que dão base ao Brasil em que vivemos.

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O Projeto Nacional de Desenvolvimento iniciado por Getulio Vargas abriu uma nova estruturação das relações políticas e sociais no Brasil. A transição do Brasil agrário para o urbano é acompanhada pelo embate dialético entre o coronelismo e o populismo e culmina na construção da democracia de massas brasileira. Todas as forças políticas têm de transitar para o populismo, ainda que o coronelismo continue operando como estrutura política subsidiária para o que André Singer chamou de “Partido do Interior”, ou seja, dos interesses concretos do Brasil profundo e não-cosmopolita.

Getulio funda o PTB urbano e sindicalista, mas também o PSD, ligado aos interesses do interior, criando lideranças como Juscelino Kubitschek e Tancredo Neves em Minas Gerais, e se aliando a outras como Adhemar de Barros do PRP em São Paulo.  Este é o bloco nacional-populista do varguismo. À direita surge a UDN, do carismático e reacionário ex-comunista Carlos Lacerda; à esquerda Prestes permanece como “guia genial do proletariado e do povo brasileiro” no PCB. Todos são, em alguma medida, populistas. 

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Os comunistas também eram ‘prestistas’, apesar de negarem e criticarem o varguismo, o juscelinismo, o lacerdismo, e o ademarismo. O ciclo populista foi encerrado em 1964 pelo golpe militar. A USP, criada em 1934 pela oligarquia paulista derrotada por Vargas em 1932, comemorou o “colapso do populismo”. Nos anos 1980, após a crise do desenvolvimentismo militar submetido ao endividamento externo hiperinflacionário e hiper-concentrador de renda, a transição democrática golberiana entrega a sigla PTB para a reacionária Ivete Vargas e permite a criação do PT antes do PDT de Brizola. O “novo sindicalismo” das multinacionais ascende contra o “corporativismo” da CLT. O autonomismo-individualismo pós-moderno toma de assalto a hegemonia ideológica da esquerda e enterra o trabalhismo e o comunismo assassinados fisicamente pela Ditadura Militar. Estava interrompido o Projeto Nacional do Brasil.

Segundo Badiou, a Hipótese Comunista é uma recorrência filosófica perante a organização das relações sociais. Em qualquer sociedade, sempre haverá um grupo que defenderá que todos sejam materialmente (não apenas formalmente) iguais. A “Ideia do Comunismo” no capitalismo, de acordo com o filósofo francês, teve dois momentos fundamentais: 1) o teórico no século XIX quando do surgimento do socialismo e do marxismo, e ainda do primeiro ensaio concreto na Comuna de Paris; e 2) o histórico, ou seja, prático-político, no século XX, quando das revoluções socialistas inauguradas pela Revolução Russa.

A contribuição histórica do populismo comunista do antigo PCB ao Brasil não se resume à figura de Luís Carlos Prestes, este foi apenas o líder catalisador de um movimento amplo. Este é o papel dos líderes carismáticos e dos caudilhos libertadores, expressar uma determinada consciência social, neste caso, a Hipótese Comunista. O comunismo no Brasil foi um fenômeno de repercussões de longa duração na cultura nacional. Sob o risco de deixar de citar muitos, é bom lembrar de Caio Prado Jr., Cândido Portinari, Carlos Drummond de Andrade, Di Cavalcanti, Ferreira Gullar, Graciliano Ramos, João Saldanha, Jorge Amado, Nelson Werneck Sodré, Nise da Silveira, Oduvaldo Vianna Filho, Oswald de Andrade, Pagu, Rachel de Queiróz, Tarsila do Amaral, Ziraldo, entre tantos outros notáveis. Isso para não falar dos intelectuais marxistas que ocuparam cargos importantes na burocracia estatal como Ignácio Rangel e Alberto Guerreiro Ramos, que foram assessores do próprio Vargas.

Vale a pena fazer uma menção especial ao segmento da arquitetura. Vilanova Artigas, fundador da FAU-USP, que subverteu o currículo tradicional do ensino arquitetônico, foi exilado por ser filiado ao PCB, assim como seu pupilo Sérgio Ferro, que seria crítico do modernismo brutalista do mentor. Tanto o brutalismo, que produziu grandes obras a exemplo do MASP de Lina Bo Bardi, como a crítica marxista da Arquitetura Nova, são frutos da Hipótese Comunista no Brasil. O internacionalmente renomado Oscar Niemeyer, que desenhou a sede do Partido Comunista Francês em Paris, projetou também todos os prédios de Brasília, a capital federal construída por JK do conservador PSD.

A cidade projetada por Lúcio Costa é a síntese de concreto e asfalto, de contornos modernistas desenhados por um comunista, do Projeto Nacional de Desenvolvimento do Brasil. A industrialização, a criação da infraestrutura de transporte, e a marcha para o oeste da interiorização e urbanização do país. Qualquer polêmica à parte contra Brasília, as multinacionais, ou qualquer aspecto da industrialização e urbanização do Brasil, não pode suprimir o fato inafastável do papel da Hipótese Comunista na construção da nação brasileira, materialmente e espiritualmente. Não podemos deixar de registrar, que também nesse mesmo momento, o Brasil deu ao mundo a Bossa Nova e o Pelé.

Nacionalismo, trabalhismo e comunismo compõem o trinômio que transformou o Brasil no país que mais rápido se desenvolveu economicamente no século XX no Ocidente (devido o desempenho de URSS e China no mundo socialista), e gerou uma das culturas mais complexas, criativas e pujantes da Terra. Darcy Ribeiro ousou dizer que estávamos diante de uma inédita Civilização, a Nova Roma, surgida na periferia colonial da Europa, porém, mais unificada do que a África e a América espanhola, e mais miscigenada do que os EUA. O golpe militar de 1964 foi contra a construção da nação brasileira pelo populismo. Tanto do varguismo-juscelinismo que conduzia o Estado nacional, como da oposição comunista-prestista, e de suas contribuições culturais para o próprio nacional-desenvolvimentismo que criticava. Aliás, não nos esqueçamos, Prestes realizou sua tácita “autocrítica” e morreu filiado ao PDT como presidente de honra do partido herdeiro do trabalhismo.

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A “pós-política” neoliberal e a esquerda brasileira na redemocratização

Ernesto Laclau e Chantal Mouffe explicam que a hegemonia neoliberal e pós-moderna submetem todo o espectro político ao que chamaram de “pós-política”, ou, como diria Francis Fukuyama, o “Fim da História”. Não havendo mais alternativa ao capitalismo, e pior, ao pós-fordismo financista globalizado, esquerda e direita se revezam no poder apenas para discutir questões identitárias, mas aplicam o mesmo programa econômico, o neoliberalismo sob hegemonia do capital financeiro. No entanto, no meio do caminho, havia uma pedra, a crise de 2008. A nova transição abre inéditas e repetidas possibilidades. Mouffe e Laclau apontam o retorno do “momento populista”. Direita e esquerda novamente têm a oportunidade de disputar a construção das formas institucionais da acumulação, tanto em sentido progressista como reacionário. Para não ser repetitivo, indico que procurei resumir este panorama ideológico em “Crise do Pós-Modernismo e ascensão da Revolta Irracionalista”, e assim, passamos a tratar das especificidades brasileiras de nosso tempo.

Durante as 3 décadas de hegemonia pós-fordista e neoliberal no Brasil, a Hipótese Comunista foi totalmente obliterada. O antigo PCB, o chamado “Partidão”, é esvaziado e, por fim, liquidado por Roberto Freire (candidato a presidente dos pecebistas em 1989) que muda o nome do partido para PPS (atualmente Cidadania). O PCdoB, fundado por João Amazonas contra o revisionismo kruchevista em 1962, avaliou que Lula e o PT seriam o futuro da esquerda e realizaram notável aliança desde os anos 1980 com o partido anti-varguista. Em 1996 é novamente registrado um partido com a sigla PCB, porém, ao contrário do original, sem nenhum tipo de relevância de massas ou institucional, seja parlamentar, estudantil ou sindical. O PCB virtualmente não existe mais como sujeito político, apenas como grife para jovens marxistas engajados na internet.

O trabalhismo herdeiro do varguismo também foi bloqueado, porém, manteve-se vivo, ainda que respirando por aparelhos. Leonel Brizola, o incrível governador do Rio Grande do Sul que atrasou o golpe por 3 anos de 1961 para 1964, governou o Rio de Janeiro por duas vezes na transição neoliberal. Cercado por todos os lados, sofrendo oposição violenta da Globo e do PT, fez os governos mais progressistas da história do Rio, notadamente na educação com os CIEPs e na segurança pública. Brizola teve como vice-governadores, ninguém menos do que Darcy Ribeiro e Nilo Batista. Não é preciso dizer mais nada. Além disso, o PDT foi um dos pioneiros na luta pela institucionalização do antirracismo após a redemocratização, com Caó, Abdias do Nascimento, etc. O brizolismo levou a sério a luta institucional pelos direitos humanos, tão esvaziados pelo neoliberalismo progressista. No entanto, Brizola foi vilipendiado e isolado pelo PT que cresceu como perna esquerda do neoliberalismo no Brasil.

O PSDB e o PT surgiram como partidos complementares da esquerda brasileira pós-Ditadura. Os petistas como partido que unia o novo sindicalismo do ABC Paulista e parte da intelectualidade da USP, além de ex-comunistas. Os tucanos surgem pouco depois liderados pelo “Príncipe” da sociologia da USP, Fernando Henrique Cardoso, e outros intelectuais de classe média, inclusive dissidentes do PT. O que os dois tinham em comum era sua oposição ao regime militar e ao nacional-populismo varguista. Lula combatia o corporativismo da CLT em prol da “liberdade” sindical da concorrência entre os representantes dos trabalhadores. FHC combatia o nacionalismo em prol da “dependência associada” às potências imperialistas. O tucano decretou o fim da “Era Vargas” em seu último discurso como senador antes de assumir a Presidência da República. Lula assinou a Carta ao Povo Brasileiro prometendo (e cumprindo) manter a mesma política macroeconômica neoliberal do antecessor.

A “pós-política” brasileira faria corar de constrangimento os críticos da adesão ao neoliberalismo do Partido Social-Democrata da Alemanha, do Partido Trabalhista no Reino Unido ou do Partido Socialista na França. PT e PSDB foram exemplos paradigmáticos do que pode ser a alternância de poder sem alteração da política econômica. Justiça feita ao PT que ampliou o assistencialismo proposto pelo Consenso de Washington, praticou uma política externa voltada ao Sul do mundo, e conseguiu criar um movimento populista lulista nos rincões do Brasil. No entanto, ainda que os tucanos sejam mais organicamente ligados ao Departamento de Estado dos EUA, principalmente ao Partido Democrata, justiça também deve ser feita a FHC, que, por exemplo, jogou papel diplomático crucial na reversão do golpe de Estado na Venezuela em 2002. Desse modo, com algumas nuances, PT e PSDB, de fato, foram as pernas esquerda e direita do neoliberalismo no Brasil.

No entanto, como de costume, a regulação neoliberal entrou em crise. As grandes manifestações de massa em 2013, incensadas pelo imperialismo que encontrou terreno fértil no marasmo econômico pós-crise de 2008 e no imobilismo da incompetente Dilma Rousseff, abriram uma nova conjuntura política no Brasil. A eleição de 2014 divide o país no meio, a direita vai às ruas, a extrema-direita ganha corpo, e Dilma é derrubada sem resistência de forma patética em 2016, após o estelionato eleitoral de nomear Joaquim Levy para aplicar um brutal ajuste fiscal, ou seja, o programa econômico de seu adversário tucano.

Em 2018, o bolsonarismo torna-se um movimento populista de extrema-direita capaz de vencer o lulismo acossado pelo lavajatismo. Por outro lado, o brizolismo ressurge com Ciro Gomes, o ex-tucano que rompeu com o PSDB com a chegada de FHC ao poder após o sucesso do Plano Real, e que já havia tido o apoio do caudilho gaúcho em 2002. Como candidato do PDT, Ciro é alçado a herdeiro de Brizola e Vargas e fica em terceiro lugar nas eleições presidenciais mesmo totalmente isolado pelo PT à esquerda, e pelo PSDB à direita, cujo candidato Geraldo Alckmin fracassa miseravelmente mesmo com o apoio de todo o establishment político. Boulos foi o candidato do PSOL e obteve um resultado terrível, cumprindo o papel de linha auxiliar do lulismo. Em 2014, Luciana Genro, fazendo oposição trotskista e lavajatista ao PT, obteve praticamente o dobro dos votos do líder do MTST.

A volta da Hipótese Comunista na esteira do populismo de Boulos

O PSOL surge como dissidência do PT após a reforma da previdência de Lula e da crise do Mensalão. Suas principais correntes são a Ação Popular Socialista (APS), liderada por Ivan Valente, e o Movimento Esquerda Socialista, liderado por Luciana Genro. A APS defende basicamente o mesmo programa assistencialista do PT, mas é mais moralista e sectária, atuando inclusive a favor da destruição das empresas nacionais de engenharia que competem no mercado internacional. O MES é uma mistura de trotskismo pragmático, lavajatista e identitário. As outras correntes jogam papel menor, ora se aliando a uma fração, ora a outra. No último congresso partidário, diante do impasse entre as correntes dominantes, Marcelo Freixo se ofereceu como nome de consenso para presidir o partido. O deputado federal carioca não é de nenhuma das correntes majoritárias, e é uma unanimidade no partido devido sua expressão nacional como defensor dos direitos humanos. Mas os caciques psolistas não estão preocupados com consensos ideológicos ou programáticos, apenas com os aparelhos institucionais que podem controlar, tais como o fundo partidário, a definição das chapas eleitorais etc. Para se ter ideia, o atual presidente do partido é um quadro de movimento estudantil totalmente inexpressivo que cumpre apenas o papel de proxy de Ivan Valente, devido sua capacidade de impor delegados congressuais da APS.

Apesar do péssimo desempenho como linha auxiliar da candidatura do PT em 2018, em 2020, Boulos fez uma grande campanha a prefeito de São Paulo. Chegou ao segundo turno, levando o grosso dos votos do PT na classe média, e deixando o petista Tatto apenas com sua base tradicional no fundão da zona sul. De fato, Boulos ameaça a hegemonia petista nos segmentos médios da intelectualidade e dos artistas de esquerda, mas patina na periferia, a despeito da militância do MTST nas camadas mais pobres. O movimento liderado por Boulos é muito organizado e consegue ser um protagonista político relevante, mas é muito pouco denso na população e não consegue disputar a massa periférica do eleitorado.

Assim como Freixo, Boulos se impõe como unanimidade no PSOL por sua relevância nacional. Os dois quadros são independentes da burocracia nacional do PSOL, e estão acima mas, ao mesmo tempo, abaixo das correntes majoritárias. São bem tratados como puxadores de votos e articuladores de assuntos estratégicos mais amplos e gerais perante o Governo ou o Congresso, mas não têm o controle interno da máquina partidária. Boulos, inclusive, está numa posição burocraticamente inferior à de Freixo, pois apesar de ascendente com o desempenho de 2020 na capital paulista, não controla nenhum tipo de máquina partidária, nenhum mandato parlamentar. Por outro lado, a vacilação e desistência do deputado federal na disputa municipal do Rio de Janeiro o deixou bastante enfraquecido. Além disso, o fato de Boulos não depender de um mandato parlamentar também dá certa liberdade a ele. Freixo nunca poderia ser candidato a governador ou presidente, sob pena de perder seu mandato como deputado. Boulos foi candidato a presidente e candidato a prefeito da maior cidade do país, e é um líder de movimento social. Desse modo, atualmente, sua capacidade de impor-se como líder populista do PSOL é muito maior, enquanto Freixo se reduz cada vez mais a um quadro regional ou setorial da pauta de direitos humanos.

Por isso, minha tese aqui é que Boulos pode representar o retorno da Hipótese Comunista no Brasil que um dia foi representada por Luís Carlos Prestes. Antes que histéricos apressados fiquem ofendidos, é evidente que Boulos não é comunista. Seu programa é basicamente um reformismo radical, de exigir direitos sociais elementares como moradia universal. Mas isso não é banal quando colocado em perspectiva do que foi a Hipótese Comunista durante o auge do nacional-desenvolvimentismo. A CLT não é fruto apenas do ímpeto modernizador de Vargas para o mercado de trabalho, mas também da luta dos sindicalistas comunistas e anarquistas desde a greve geral de 1917. A retomada do Projeto Nacional de Desenvolvimento interrompido no Brasil também dependerá do ressurgimento de um movimento de massas radical, liderado por um líder populista, que negocie a reconstrução dos direitos sociais. Mas em novos termos, em nova estrutura social, e em nova conjuntura. Evidente que Ciro Gomes não é Getúlio Vargas, nem Alexandre Kalil é Juscelino Kubitschek, tampouco Boulos é Prestes. Por outro lado, são sim! Representam a repetição do espírito do tempo desses gigantes do passado.

No entanto, Boulos ainda não é um líder efetivamente popular, ao contrário do ex-governador que mantém a hegemonia no Ceará há 30 anos, ou do popular prefeito de Belo Horizonte, terceira maior capital do país, que deve tornar-se governador do segundo maior colégio eleitoral em 2022. Boulos não tem uma organização realmente massificada e ramificada como teve o líder da Coluna Miguel Costa-Prestes e da Aliança Nacional Libertadora (ANL), além do apoio de um poderoso movimento comunista internacional sediado em Moscou.

Como já explicado em “Boulos quer ser o Pablo Iglesias (Podemos) e Tsipras (Syriza) do Brasil”, por enquanto, seu teto é a classe média antes hegemonizada pelo PT. Em 2018, Boulos tentou e fracassou em buscar capitalizar para si o lulismo no interior do Brasil. Porém, o MTST é capaz de organizar contingentes relevantes de militantes disciplinados para criar ocupações autogeridas, resolver problemas comunitários concretos e criar certa capilaridade social, inclusive para se defender da repressão se necessário. Este não é o caso das outras organizações autoproclamadas radicais de esquerda.

O PSTU, por exemplo, é uma antiga dissidência trotskista do PT, que teve certa presença no movimento sindical, e alguns intelectuais competentes. Hoje, o que havia de mais relevante na seita trotskista já migrou para o PSOL. A UP, antigo PCR, conseguiu seu registro eleitoral recentemente, mas deve morrer no nascedouro. A cláusula de barreira vai destruir materialmente qualquer partido sem densidade eleitoral. Não haverá mais fundo partidário e eleitoral para esses partidos, nem espaço na rádio e TV, meios cada vez menos relevantes, mas que ainda cumprem papel no Brasil profundo. Ou estes partidos nanicos serão totalmente esmagados materialmente ou aceitarão ser incorporados como correntes internas do PSOL.

Esse é o mesmo dilema do neo-PCB, fundado em 1993 e registrado em 1996. O partido não tem nenhuma presença institucional no Estado, é absolutamente minoritário no movimento estudantil, e beira a inexistência nos movimentos sociais e sindicais. Tampouco tem relevância na cultura. No entanto, o novo PCB ganhou certa notoriedade devido ao sucesso do youtuber Jones Manoel, que é um competente agitador e propagandista de marxismo-leninismo, teorias e lutas antirracistas e anti-imperialistas. Jones cumpre um papel importante de propaganda na reconstrução política da Hipótese Comunista. Tanto é assim, que ganhou as páginas da grande mídia ao conseguir chamar a atenção de Caetano Veloso.

Mas, como eu disse, o PCB vive um dilema. O partido se aliou eleitoralmente ao PSOL, apostando em surfar na onda do populismo de Boulos, porém, foi muito mal sucedido, com votação menor do que a do psicodélico lulo-neymarzista-trotskista PCO. O sucesso do marxismo no Youtube e no Twitter não se reverteu em votos. Com o sufocamento material cada vez maior da cláusula de barreira, Jones Manoel representa uma nova geração de comunistas que não quer ficar submetida a uma seita que não incide na realidade. Faria sentido ao PCB entrar no PSOL como corrente pelas mãos do simpático Glauber Braga e fortalecer Boulos internamente, agregando densidade teórica ao movimento populista do líder sem-teto. Mas os pecebistas vivem uma ilusória tentação: assumir o protagonismo da grife comunista diante do iminente liquidacionismo do PCdoB, também vítima da cláusula de barreira, que será repartido entre o PT (para onde vai a ala identitária como Manuela D’Ávila e Jandira Feghali) e o PSB (para onde vai a maioria da ala nordestina).

Independentemente do que decidam os dirigentes de todas esses partidos ceifados pelo sistema eleitoral, Boulos se consolidou como o líder possível da esquerda radical possível. Assim como Ciro Gomes representa um neo-Vargas, Alexandre Kalil um neo-JK, Rodrigo Maia do DEM um neo-Tancredo Neves, Gilberto Kassab do PSD um neo-Adhemar de Barros, ACM Neto já carrega no nome sua estirpe, além dos Campos/Arraes em Pernambuco. Todos esses atores concretos, não valem por si, mas pelos lugares que ocupam na conjuntura de crise e transição para fora da “pós-política” neoliberal anti-populista. Suas contradições e idiossincrasias importam menos do que o derretimento da hegemonia PT-PSDB a que estavam submetidos nos últimos 30 anos. O sistema “petucano”, na expressão de Gilberto Vasconcellos, empurrava para fora das instituições políticas qualquer projeto rebelde, seja do nacional-desenvolvimentismo ou da Hipótese Comunista. Essa hegemonia acabou, e a história está em aberto. Getulio vai voltar, e Prestes também.

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