O colonialismo do colunismo brasileiro

Populismo nos jornais brasileiros. Folha, Estadão e O Globo
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“Quem é Tom Barros?” Você me pergunta. “Fi de quem?”. Eu te respondo. E foi assim que as colunas de Tom Barros para o Congresso em Foco vieram parar em minha timeline. Do nada. E é assim que as colunas de Tom Barros passam a existir pra você. Do nada. Antes, fique claro: não é meu primo. Depois, nunca nem vi. Porém, advirto: não espanto as moscas das colunas de Tom Barros para pegar carona em sua fama. Alguém lê Tom Barros? O problema é que suas colunas sobre o populismo refletem tudo o que os colunistas dos grandes jornalões sabem sobre o assunto. E tudo é nada.

Em seus artigos sobre o populismo, Tom Barros trabalha com o conceito de “espiral populista”, que pode ser assim resumido: todo o poder emana do povo, segundo a Constituição, mas, já que a política é dominada pelo paroquialismo, pelo curto prazismo e pela possibilidade de reeleição, o comportamento irresponsável dos atores políticos descambaria em crise fiscal, que culminaria em crise econômica. E porque a crise econômica acarreta empobrecimento e ansiedade, as pessoas tenderiam a apoiar líderes fortes- “uma expressão eleitoral autoritária”, como “Ciros e Bolsonaros”-que tenderiam a reforçar a polarização e a defesa ideológica, o que levaria a mais irresponsabilidade fiscal e a mais crises econômicas. Esses tipos de líderes enfraquecem a democracia porque dividem a sociedade e alijam o povo das decisões, em uma forma de representação política que serviria apenas às elites. Para Tom, “a elite não suporta a ideia de que a democracia considere o voto do povo”. Assim, chegamos às conclusões de nosso brilhante colunista: educação para que a democracia não dependa de iluminados e combate à miopia das elites que são preconceituosas em relação ao povo.

Começo questionando as proposições aparentemente mais elaboradas do colunista para então chafurdar no bagaço, que é o mesmo bagaço do colunismo político das grandes redações. Antes de tudo, porém, é bom assentar uma premissa fundamental das teorias do comportamento político: os atores agem no sentido de maximizar suas chances de reprodução eleitoral. Todos. Negar isso é refutar ciência com moralismo de boteco. Continuemos. Em primeiro lugar, não é verdade que o comportamento legislativo seja dominado pela lógica paroquialista, de perseguição de políticas públicas de benefícios concentrados e custos difusos. Em livro sobre comportamento legislativo no Brasil, Rojas de Carvalho (2003) conclui que metade dos representantes eleitos nas legislaturas analisadas apresentou distribuição de votos dominantes. Estes sim tendem a ter um comportamento mais paroquial, para atender a bases geograficamente mais concentradas. Consequentemente, a outra metade, eleita de forma geograficamente mais distribuída ao longo do território, tenderia a uma prática legislativa mais universalista. Ainda assim, o comportamento parlamentar é diretamente dependente da estrutura decisória do interior do Congresso, bem como do monopólio da agenda legislativa pelo poder Executivo. E esse arcabouço institucional, como comprovou Limongi e Figueiredo (1999), contribui para a disciplina partidária e a busca por políticas mais universalistas. Portanto, a generalização de Tom Barros simplesmente não procede.

Sobre a reeleição, seremos telegráficos: primeiro porque estudos comprovam que suspeitos de corrupção têm baixa taxa de reeleição. Segundo porque a reeleição pode ser uma boa forma de o povo premiar e reconhecer bons políticos. Por fim, estudos também atestam a existência de uma correlação positiva entre impossibilidade de reeleição e corrupção. Isso porque políticos que não podem se reeleger não precisam se preocupar com sua reputação, ficam menos responsivos, e isso tende a incentivar práticas fiscais irresponsáveis ou mesmo corrupção.

Se não é verdade que o comportamento legislativo seja dominado pelo paroquialismo e, tampouco, que a reeleição estimule a corrupção, a fragilidade do conceito de “espiral populista” expõe as fraturas das colunas de Tom Barros. Além disso, embora possa haver alguma relação entre irresponsabilidade fiscal e reeleição – dificultada pela Lei de Responsabilidade Fiscal -, não se pode dizer que a crise fiscal seja obra de comportamento legislativo particularista. O próprio autor, auditor do Tesouro Nacional, deveria saber a tautologia de que a estrutura do gasto público no Brasil está diretamente relacionada à estrutura socioeconômica do país. Mais envelhecimento, menos natalidade, mais pressão sobre as despesas. Menor produção, mais desemprego, menos consumo, menos receitas. Simples. O que comportamento de deputado tem a ver com isso?

Assim, não é necessariamente verdade que crises econômicas se originam de crises fiscais. O mais comum é que crises econômicas – muitas vezes iniciadas por oscilações do mercado global – provoquem crises fiscais, como, por exemplo, a crise de 2008, que desabou os preços das commodities. Não se trata de desresponsabilizar o perdularismo fiscal de Dilma, nem sua inércia no enfrentamento de problemas ao negligenciar reformas necessárias. Mas devemos nuançar a relação direta – e forçada – proposta por Tom Barros entre irresponsabilidade parlamentar, reeleição e a crise fiscal. Só um parêntese: esse deve ter apoiado o golpe. Então, se é verdade que crises fiscais acarretam crises econômicas, não é necessariamente verdade que crises econômicas se originam de crises fiscais.

É hora de chafurdar na bagaceira. Se a lógica da “espiral populista” começa capenga, termina bisonha. Olha como nosso colunista continua: a crise fiscal gerada pela irresponsabilidade de políticos particularistas gerou crise econômica que gerou empobrecimento e ansiedade, que gerou demanda por “expressões eleitorais autoritárias”, como “Ciros e Bolsonaros”. Ele continua. Eu paro. Pera um pouquinho. Repare bem. O cara soca Ciro Gomes no mesmo balaio que Bolsonaro a partir de uma relação de causa e consequência extremamente duvidosa, como observamos acima. Aboletar Ciro Gomes no mesmo balaio de Bolsonaro seria um faccioso ato de má fé? Não posso crer. Nosso colunista se perde do começo ao fim dentro da própria “espiral populista” que cria. Pode ser que suas inconsistências não sejam maldade, mas preguiça. E não se trata de defender Ciro Gomes, mas a verdade. Primeiro porque não se pode afirmar que Ciro é irresponsável fiscalmente, já que em sua vasta experiência executiva, nunca governou com déficit. Em segundo lugar, vem propondo como ninguém a inserção social do povo, por meio da democratização de oportunidades econômicas, bem como da democratização da política, porque defende a utilização de instrumentos de democracia direta, como plebiscitos e referendos. E prometo não falar sobre educação. Nosso colunista se diz militante da causa. Será mesmo que desconhece a realidade da educação pública do Ceará?

Tom Barros desce o cacete no populismo, mas não define o conceito, porque, como os colunistas dos grandes jornalões, transforma conceito em pré-conceito contra adversários políticos. A palavra populismo tornou-se um significante vazio para os liberais camuflarem o medo que sentem da verdadeira política e atacarem candidatos que querem mudanças reais. O grande temor dos liberais é divisão política da sociedade, como se a política não tivesse a obrigação de articular as diversas demandas do povo para transformar uma sociedade cuja essência é a divisão material.  Como se a identidade política não se constituísse a partir de uma fronteira antagônica, que divide grupos com interesses sociais completamente distintos. Política não é consenso, Tom Barros, é conflito. No sentido de Laclau (2006), o populismo seria justamente uma forma de incorporação do povo na tomada de decisões, “um momento em que o poder articulatório da classe dominada se impõe hegemonicamente sobre o resto da sociedade”.

Portanto, quando nosso colunista diz que: “a elite não suporta a ideia de que a democracia considere o voto do povo”, ou está sendo verdadeiramente populista ou está sendo mais um desses colunistas a nos convencer de que direita é centro, de que política é consenso, de que a economia pode ser gerida de forma absolutamente técnica e de que não existe uma luta por recursos escassos na sociedade. Em nome da manutenção do status quo, está valendo inclusive ressuscitar o antipopulismo da velha UDN. Não se trata de “miopia das elites”. As elites possuem visão biônica. O bom é que o povo não é cego.

Referências:

CARVALHO, N. E. No início eram as bases: geografia do voto e comportamento político legislativo no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 2003.

FIGUEIREDO, Argelina Cheibub; LIMONGI, Fernando. Executivo e Legislativo na nova ordem constitucional. 1999.

LACLAU, E. A razão populista. Três estrelas. 2013.