Desobediência civil e o direito essencialmente como forma

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Vivemos tempos históricos no país – independentemente de qual lado da existente polarização política alguém se alinhe, todos hão de concordar com isso. A prisão de qualquer pessoa não poderia ser tomada com satisfação ou felicidade por alguma outra pessoa que se diga a favor da liberdade e da transformação individual. Muitas críticas podem ser feitas ao punitivismo como solução social para problemas, aqui, bastará uma: historicamente, não houve melhora social (para nenhuma hierarquia existente) através do punitivismo. Portanto, há algo de errado com a celebração (tão aguardada por muitos) da prisão de um ser humano; mais estranheza ainda causa quando se compreende que tal prisão é de um líder político que se alçou ao posto mais elevado da política nacional (chefe do executivo), garantindo ainda uma sucessora no mesmo posto.

A prisão do presidente Luis Inácio Lula da Silva (Lula) é uma imagem que já repercute mundialmente, mas que não foi nenhuma surpresa, pois há muito já era delineada. A sua resistência à prisão nas primeiras horas foi um ato de desobediência civil; sua entrega no início da noite de sábado, uma demonstração de respeito às instituições (incluindo-se as normas) do país que foi presidente por oito anos. Por alguns, a prisão era esperada (e estes comemoram); por outros, trata-se de um lamento e um pesar cujo resultado deve ser um reerguimento em planos e estratégias políticas nacionais.

Desde que se comentou o episódio conhecido como “mensalão”, foi alardeado pela mídia e por opositores a participação de Lula em esquemas de corrupção. Nada que pudesse envolve-lo diretamente foi sequer mencionado no episódio. A cúpula do Partido dos Trabalhadores – do qual Lula é a maior figura –, sofreu grande revés, tendo grandes nomes (como José Dirceu e José Genoíno) condenados e presos. Desde então, criou-se no imaginário popular a ideia de que um partido era, se não o único responsável por toda a corrupção nacional, o maior responsável por toda a corrupção da história do país.

Independentemente do progresso econômico-social que os governos petistas garantiram ao país (fosse para as classes mais altas, fosse para as mais baixas), a continuidade desses governos desagradava a muitos (principalmente, grupos sociais que sempre estiverem à frente do poder). Era necessário penalizar a imagem desse progresso, e o único capaz de unificar a imagem dos governos e do partido governista era Lula. A mobilização midiática (por seus diversos veículos) era em função de criminalizar a imagem do PT e de seus maiores representantes – fossem eles culpados ou não, eles deveriam ser vistos como corruptos.

É bom sempre ressaltar que a corrupção no Brasil (como em muitos outros países) é um problema estrutural. Isso significa que não é possível personalizar a culpa e, também, que se procurar bem, achar-se-ão fraudes em empresas (públicas ou privadas) e governos (independentemente do partido, ou da hierarquia em que ocorra a fraude – se cúpula ou base). Passou-se, então, a procurar sinais da existência de fraudes ou crimes que pudessem cumprir o papel profético de condenação da pessoa e da imagem de Lula. A chamada “Operação Lava-Jato” da Polícia Federal, desde Curitiba (Paraná), designou funcionários públicos específicos para investigar contratos realizados entre algumas empresas públicas e privadas.

Atravancando um excelente setor produtivo do país que se expandia internacionalmente (construção civil) garantindo marca de excelência para algumas empresas brasileiras, mas também para o país como um todo, essa operação gerou clima de incertezas econômica e política. Com algum tempo de existência, mas sem conseguir produzir provas suficientes para o que se esperava alcançar, a operação mostrou qual seria o seu modo de atuação: delação premiada. Assim, com tantas empresas envolvidas de um único setor, criaram um elo com Lula: a empresa era possivelmente corrupta e já atuava na época dos governos de Lula; este, por sua vez, fora ver um imóvel para comprar no litoral paulista e, talvez, frequentasse um sítio no interior do mesmo Estado.

Fizeram parecer ultrajante que um antigo Presidente da República, que outrora fora metalúrgico e, depois, sindicalista, conseguisse comprar (ou mesmo propor a compra) de um apartamento na cobertura de um prédio no Guarujá. Chamaram, então, o presidente da empresa que construiu o prédio, prenderam-no e propuseram um acordo em troca da delação, o que foi aceito. A primeira delação, contudo, não foi ao gosto dos investigadores, pois não envolvia o ex-presidente. Não houve acordo. Propôs-se uma segunda delação, quando ele ainda estava preso e já havia sido condenado, uma outra história dos mesmos fatos, mas envolvendo Lula – acordo feito.

Começaram as exceções à aplicação do Direito, primeiro como forma (o que chocou), depois em seu conteúdo. Lula foi chamado para depor sobre os fatos da delação por condução coercitiva, medida de exceção quando uma pessoa se nega a comparecer para prestar depoimento após receber intimação – nunca houve intimação, começa-se o teatro. Nessa primeira oportunidade, Lula afirmou que sua estimada esposa, ainda viva na época do depoimento, de fato, quisera adquirir o imóvel, mas que eles nunca efetuaram a compra. Após tornado Réu, repetiu-se o depoimento. Nesse momento, a mídia não o poupou: Lula estaria culpando sua falecida esposa.

A defesa era sólida, na postura e nos fatos: não havia comprovação de que Lula teria comprado o imóvel e, se houvesse comprado, nada indicaria que isso seria um ato de corrupção passiva por parte dele. Muitas testemunhas foram ouvidas em favor de Lula, algumas contra (incluindo a delação premiada do presidente da empresa, que teve sua condenação reduzida após o acordo). Não havia documentos suficientes para que a famigerada convicção se tornasse prova. Lula foi condenado. Os mesmos que celebraram a prisão, celebraram a condenação – a mídia nacional apoiava os fatos enquanto tentava se mostrar isenta, a mídia internacional condenada fortemente.

A defesa continuou sua saga (a qual ainda não se findou), recorrendo ao tribunal competente. Havia esperança de que os desembargadores analisassem as provas corretamente e, vendo a escassez de segurança nelas, absolvessem o réu. Aumentaram a pena de Lula (de 9 para 12 anos). Ao mesmo tempo em que foi feito recurso para o mesmo tribunal, a defesa apresentou habeas corpus (HC) para o Superior Tribunal de Justiça (STJ), com receio de que a prisão fosse decretada após o julgamento da segunda instância e sem a análise pelo STJ e Supremo Tribunal Federal (o que voltou a ser feito em 2016, contra muitos fundamentos apresentados). A liminar do HC foi negada e novo HC foi proposto contra essa denegação, desta vez no STF.

O Supremo estava para tornar a decidir pela constitucionalidade ou não da prisão após condenação em segunda instância (antes, portanto, do trânsito em julgado da condenação, mesmo havendo recursos cabíveis). Julgaram Lula antes. Na quarta-feira (4 de abril de 2018), um voto foi extremamente explicativo: quando o STF fosse votar a norma que valeria para todos, o entendimento seria pela impossibilidade da prisão; votaram a norma que valeria para Lula – pode prender. No dia seguinte à permissão, sem publicação no Diário Oficial, a segunda instância autoriza a prisão. A primeira instância, no mesmo 5 de abril, dá a ordem de prisão e um prazo: 17h da sexta-feira (6).

A formalidade do Direito foi cumprida numa velocidade abrupta. O Direito foi essencialmente formal, desde sua origem – investigou, formulou-se a denúncia, o réu defendeu-se, interrogaram-no, sentenciaram sua condenação, ele recorreu e perdeu, usou remédios constitucionais. Não importa o conteúdo da prova ou a existência de muitas outras provas contrárias àquelas da condenação. Não importa se são apenas falas de outras pessoas que lutavam por sua liberdade. Todas as provas estavam no processo e quem daria o peso a cada uma delas seria o juiz. Também não importa a afinidade política do juiz e de sua família, nem mesmo a proximidade dele com os opositores declarados do PT. E no Supremo? A lei para todos é uma, para Lula é outra, mas a forma do Direito continua mantida. Essencialmente formal. Prisão política.

No mesmo Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em São Bernardo do Campo (São Paulo), Lula passou aquela sexta-feira (6), com o mais memorável discurso de um líder político brasileiro nas últimas décadas, com churrasco e com o povo. Não importou o massacre midiático, o povo não abandonou Lula. Às 17h daquele dia, Lula não se entregou à polícia para sua prisão. A polícia desistiu de ir atrás naquele momento, não compensaria tentar invadir o local e levá-lo à força. Caso fosse possível a ação da polícia, não seria algo pacífico e possivelmente haveria feridos (para dizer o mínimo). Não havia fugitivo, todos sabiam onde Lula estava.

Lula desobedeceu uma ordem judicial temporariamente. Após celebração religiosa na manhã de sábado e manutenção da reunião política no Sindicato, Lula iria deixar seguir o rito do Direito Essencialmente formal – ele não iria se opor ao Estado Democrático de Direto [com todas as letras maiúsculas, pois nenhuma das palavras pode efetivamente representar o que significa, são nomes próprios apenas]. Marcou seu horário, 16h30. O povo não permitiu. Apenas após às 18h, Lula encontrou-se com a polícia e foi ser preso em Curitiba.

A resistência do povo ao redor de Lula é a maior manifestação democrática e popular que houve no Brasil nas últimas três décadas – não pelo número de pessoas, mas pela sua essência de contestação à força vigente em seu grau mais opressor antes do exército, a polícia. A desobediência civil de Lula, além de ser manifestação das suas liberdades política e de expressão, é sinal de as esperanças adquiridas não podem acabar, de que o enfrentamento político é ainda possível, e de que a necessidade de reorganização para o povo e pelo povo é urgente.