Refletindo sobre o antipetismo

Refletindo sobre o antipetismo
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Por Helid Raphael – Meu amigo e camarada Gilberto Maringoni demarcou: “todo antipetismo é de direita”. Passei anos concordando e repetindo essa frase.  Baseado nela, defendi os governos de Lula e Dilma até fisicamente. Mas um processo que se intensificou no pós-golpe me levou a me autodefinir como sendo um antipetista de esquerda.

Isso porque depois de anos de estudo, militância e derrotas, entendo que a retomada de nossa história passa pela compreensão do caráter do golpe de 1964 e, a partir daí, da reorganização do campo político derrotado. Para não cansar quem estiver lendo, mas desde já me colocando à disposição para aprofundar essa questão, afirmo que este “antipetista de esquerda” decidiu escrever essas linhas atendendo à uma “provocação” d0 irmão Álvaro Miranda.

Álvaro é mais que um amigo querido. Um irmão, eu já disse. Brilhante, culto e generoso. Em minha opinião é um dos intelectuais que mais entende os aparelhos estatais e todas as suas implicações e relações em nosso país. Agora, influenciado por “ponderações pertinentes” de uma veterana comunista “amiga muito querida”, propõe que se impeça imediatamente “a disseminação do antipetismo”.  Comunista veterano e tendo tudo para me considerar amigo muito querido do Álvaro Miranda, vou procurar responder às questões levantadas por ele.

Antes de chegarmos na prisão de Lula, talvez tenhamos que discutir os passos dos que a perpetraram. E aqui me lembro do famoso texto de Brecht: “primeiro levaram…, em seguida levaram…, depois prenderam…”. Lembram da prisão de Henrique Pizzolato?  Funcionário de carreira do Banco do Brasil, construtor do PT no Paraná. Além dele, também sua mulher funcionária de carreira do Banco do Brasil. Quando foi condenado tinha um apartamento comprado com financiamento da Caixa. Raimundo Pereira escreveu um livro provando sua inocência. O que disse a principal liderança popular do país sobre isso? Que tipo de solidariedade foi prestada a Pizzolato? Depois veio Dirceu – o dirigente que construiu politicamente o PT e a vitória de Lula. Alguém se lembra de alguma declaração de Lula? Podia ser formal: “confio nas instituições, respeito as decisões da Justiça, mas tenho certeza que a inocência do companheiro José Dirceu será comprovada”. Disse pelo menos algo assim? Estou falando de solidariedade, de exemplo do líder… E me volta à lembrança o poema de Brecht.

Aí, chegou a vez de Lula. E cada dia era uma coisa. Lula é o candidato. Eleição sem Lula é golpe. Vai ser preso. A sede do Sindicato é a trincheira. “Se entrega Corisco. Eu não me entrego não. Me entrego só na morte, de Parabélum na mão”. E os brasileiros sendo convocados a resistir. Aí… Corisco se entrega. Quem não ouviu coisa do tipo: Lula é um gênio político. Escolheu a hora certa. Sabia o que estava fazendo. Sabia mesmo? Estava enganando seus adversários e também seus seguidores? Ou estava mesmo era perdido?

Vieram as eleições que, sem ele, seriam golpe. As pesquisas (em que todos dizem não acreditar, mas nas quais todos se baseiam) mostravam que na ausência de Lula apenas um candidato no campo popular (chamemos assim) derrotaria Bolsonaro no segundo turno. Era o ex-ministro de Lula: Ciro Gomes. Ele se empenhou e montou uma frente de partidos em condição de levá-lo ao segundo turno mesmo sem o apoio do PT.  PDT, PSB, PCdoB e um partido do campo da direita, se não me engano o PL. O que faz Lula? Chantageia (o termo é esse) os possíveis aliados de Ciro e desmonta a frente eleitoral que ele articulara. O resultado nós conhecemos. Lula favoreceu a vitória de Bolsonaro em nome da manutenção da hegemonia petista no campo popular. Não foi assim? Ainda sobre a injustiça do golpe contra Dilma, a prisão de Lula e o consequente impedimento de sua candidatura em 2016, é importante que se diga que pelo mesmo raciocínio o PT teria que apoiar Brizola em 1989. Afinal, ele era o “herdeiro” dos que foram apeados do poder no golpe de 1964.

Álvaro Miranda fala que “não se pode ’descartar’ o PT, Lula e toda uma história e trajetória que fazem parte da redemocratização e do avanço da democracia nas últimas décadas”. O fato é que nas últimas décadas nós tivemos um processo de desmonte do Estado nacional: desindustrialização, privatizações, neopentecostalismo, destruição da cultura nacional, fim da CLT e da estrutura sindical. Talvez seja hora de refletirmos sobre o papel do PT em todo esse processo. Refletir sobre isso, fazer críticas, apurar responsabilidades, não deve ser confundido com o surrado discurso petista de “estar fazendo o jogo da direita”.

Angustiado diante do terrível quadro que vivemos, meu grande amigo pergunta: “A que hegemonia chegaremos da noite para o dia chutando Lula como se fosse um cachorro morto só porque o PT está fora do governo desde 2016 por um golpe?”

A história nos dá exemplos.  Marx não assumiu a liderança do movimento operário elogiando ou poupando os socialistas utópicos. Não dizia que piores do que eles eram os burgueses ou os defensores do ancién regime. Lenin não aliviava os mencheviques. Não se conhece (eu pelo menos não) um texto ou pronunciamento em que ele diga que os prefere ao Czar. Aqui entre nós: qual o comunista (militante do PCB, PCdoB, MR8) que não se lembra de como os petistas nos tratavam. Como as lideranças petistas se comportavam e falavam de Getúlio e Brizola, sem falar na cumplicidade silenciosa sobre Jango?

Não se constrói hegemonia sem discurso alternativo. Não convenço as pessoas que tenho o melhor caminho se mantenho silêncio obsequioso diante dos equívocos e responsabilidades dos que ainda se mantém hegemônicos no meu campo.

Sobre o antipetismo vir desde o surgimento do PT, eu diria que é verdade; mas houve mudanças. Se examinarmos a chamada grande imprensa veremos que ela foi “simpática” com Lula (O Metalúrgico) e o PT nos anos de formação do partido. Com o PT no poder desenvolveu-se um virulento antipetismo. Mas isso não é novidade. Nossa história registra o anticomunismo e o antigetulismo. As classes hegemônicas brasileiras (sócias de 1964) foram e são violentamente antigetulistas. Eu me lembro como os construtores do PT se referiam (e como tratavam) trabalhistas e comunistas.

Uma outra divergência com o texto (reflexão) é que o autor afirma que apoia Ciro Gomes até com certa “afoiteza”. Não há afoiteza aí. Se creio que Ciro Gomes (e sua proposta de recuperação do nacional-desenvolvimentismo) é a alternativa que temos não existe afoiteza. Trata-se de construir as condições para levá-lo ao segundo turno. Se considero que a alternativa é o ex-governador cearense não posso esperar que surja uma outra alternativa. Na atual quadra isso seria como (guardadas as proporções) se comportar em oposição à célebre consigna de Unamuno de que “em certos momentos, calar é mentir”. A conjuntura futura se constrói na prática de hoje.

Quase no final de seu texto (como sempre brilhante), Álvaro Miranda se autorretrata modestamente, apesar do vasto currículo, e reforça a revelação de sua preocupação: “os ciristas não podem cometer o ‘acinte’ de ‘desrespeitar Lula, Dilma e o PT’”. Não posso crer que ele confunda crítica com desrespeito. Se eu tivesse dúvida não ousaria escrever essas linhas. Não magoaria meu amigo. Me atrevo a perguntar (o que não pode ser considerado ofensa): disputar a hegemonia, apontar erros, criticar, seria desrespeito? O exercício do debate é uma prática democrática. E tenho certeza que essa é também a opinião dele.

Continuando a buscar o esclarecimento das questões levantadas afirmo que concordo com a desnecessidade de “elencar o que os governos do PT fizeram de bom”. Isso seria necessário ao se discutir com defensores do golpe, como fiz dezenas de vezes.  Concordo que o golpe foi articulado muito mais pelas virtudes (e pelo pré-sal), mas considero que é o caso de se discutir o que foi feito de errado ou o que deixou de ser feito. A prevalência de uma política econômica direcionada por gente como Meirelles e Joaquim Levy, a ênfase na exportação de commodities, a conivência com a mídia hegemônica, com o capital financeiro, com o Império. Essa conivência com as forças que depois se revelariam autoras e beneficiárias do golpe pode ser constatada, por exemplo, nas nomeações para o STF, no favorecimento à Rede Globo, nos postos de comando para militares ligados ao General Frota, nos espaços concedidos aos neopentecostais. O golpe foi dado pelo que se fez de positivo, mas foi muito facilitado pelo que se fez de negativo.

Não se discute o caráter escabroso do governo Bolsonaro. Mas correndo o risco de ser incluído no terreno dos arrogantes, eu confesso que depois de tudo o que disse aqui temo que o “jeitão e carisma” de Lula possam ser de novo portas para a vitória eleitoral dos que têm como objetivo a destruição do Brasil. Por isso mesmo temos que disputar a hegemonia já. O exemplo argentino é ótimo. Lá Cristina Kirchner se comportou de forma diferente de Lula aqui. Talvez os nossos irmãos argentinos tenham justamente se inspirado no exemplo brasileiro.

Temos que concordar que nem tudo o que é novidade é bom. No Brasil pós-ditadura esqueceu-se a História. Ocultou-se porque foi dado o golpe imperialista de 1964, convenceu-se toda nossa geração que o golpe foi dado por “culpa” do populismo de matriz getulista e Getúlio era o ditador sanguinário que entregou Olga Benário aos nazistas. A CLT era cópia da legislação fascista e por aí. O Partido Comunista também não prestava. Então vamos fazer o partido Novidade. Da USP, da Folha, da Igreja Progressista, dos sindicatos alemães e da AFL-CIO. Um partido que não trabalha com conceitos “superados” como questão nacional e imperialismo. Um partido moderno que “enterre” o Estado Getulista.

O Projeto Nacional não “converge” com o que o PT fez e faria. E nisso o PT é coerente. Ele surgiu para ser alternativa ao projeto derrotado em 1964.  A única, em minha modesta opinião, forma de evitar o quadro eleitoral tenebroso que tememos em 2022 é a “afoiteza” que nos leve a assumir um projeto de retomada para o Brasil e nos propicie construir uma nova hegemonia que não seja “novidadeira”, mas que esteja firmemente enraizada na nossa melhor História.

Assim como o Álvaro Miranda, também tenho devaneios ingênuos e românticos. Mas, como ele próprio disse, a política real vem da vida e não das ideias. O PT nunca aceitou ser parceiro. Em 1982 lançou Lizaneas Maciel contra Brizola – a grande liderança que voltava do exílio no Rio de Janeiro; Lula contra Montoro – o candidato da frente democrática em SP; Gabeira contra Darcy Ribeiro no Rio, o que facilitou a vitória de Moreira Franco em 1986; e, em 1989, Lula contra Brizola. O hegemonismo está no DNA do PT e essa história de unidade vinda do PT é conversa para boi dormir. Espero não me enquadrar entre os arrogantes. Creio na vida e na amizade e é justamente baseado nas experiências que elas me proporcionaram que escrevi esse texto fraterno.

Refletindo sobre o antipetismo

Por Helid Raphael, professor colaborador e Pesquisador associado do Inst. de Estudos Estratégicos (INEST/UFF) e Laboratório de Política Internacional (LEPIN/UFF). Mestre em Política pela PUC/RJ. Doutor em Ciência Política pela UFF.