Obrigado por “rememorar” o golpe

Jango no comício da Central, ao lado da primeira-dama Teresa Goulart, em 13 de março de 1964
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Não importa a audiência. Fosse um discurso para criancinhas, por exemplo, de inauguração de uma escola, militar, claro, na rebimboca da parafuseta, Bolsonaro provavelmente dispararia o trecho do editorial que decorou do jornal O Globo de 07 de outubro de 1984, escrito por Roberto Marinho, em que este enaltece o golpe e o regime militar. Foi assim no lançamento de sua candidatura, foi assim em sabatina para o Jornal Nacional, foi assim em recente tweet, cometido, portanto, após sua eleição… e assim foi em outras ocasiões.

Em recente entrevista ao Valor, Aldo Rebelo foi preciso: “não sei por que as Forças Armadas aceitaram assumir sozinhas a herança de um golpe que não foi só delas. Foi dos empresários, da embaixada americana, da mídia, da classe média e da Igreja. Eles entraram por último… Não é educativo fazer a leitura do período absolvendo quem preparou banquete”. Assim, ao martelar o contínuo suporte das organizações Globo ao regime, Bolsonaro nos ajuda a exumar, pedagogicamente, um dos responsáveis pelo “preparo do banquete”.

A adesão social ao golpe não dever ser desaparecida da memória. Cinco dias após o histórico discurso de Jango na Central do Brasil, que colocou 200 mil pessoas nas ruas de uma Guanabara comandada por Carlos Lacerda, os antigetulistas de São Paulo aboletaram 500 mil pessoas nas ruas, naquilo que foi a primeira marcha da família com Deus pela Liberdade. Já em 02 de abril de 1964, no Rio de Janeiro, “uma multidão comemorou o sucesso do golpe e festejou a derrocada de Jango e das forças favoráveis às reformas e ao projeto nacional-estatista popular” (REIS, 2014, p. 45). A intenção de Bolsonaro ao cacarejar o editorial de o Globo pode até ser a de comprovar que o golpe teve apoio social. Mas isso já deveria ser consenso. Precisamos disputar outro discurso.

Comício da Central do Brasil
Comício da Central do Brasil

O que se deve golpear é o discurso que pode ser sintetizado no trecho do editorial decorado pelo capitão: “Participamos da revolução de 1964 identificados com os anseios nacionais de preservação das instituições democráticas, ameaçadas pela radicalização ideológica, greves, distúrbios sociais e corrupção generalizada”. O parágrafo proferido por Roberto Marinho pode ser desmantelado se obedecermos ao chamado de Bolsonaro e “rememorarmos”, no sentido de recapitular, questões que envolvem o golpe de 1964.

Primeiramente é preciso evocar a polarização social do período. O apoio social ao golpe não foi maior que o apoio social às reformas de base. Grosso modo, a sociedade estava dividida. De um lado as direitas, a classe dominante formada pelo secular poder oligárquico, pela burguesia conservadora, pelos militares influenciados pelo americanismo e pela classe média reacionária, articulados partidariamente em torno principalmente da UDN e também do PSD. As direitas adotaram um discurso moralizador contra a corrupção, anticomunista, liberal e favorável ao desenvolvimento associado ao capital estrangeiro. Por outro lado, apoiando o reformismo trabalhista, havia a classe trabalhadora, setores nacionalistas da burguesia, do exército e da classe média, principalmente articulados em torno do PTB, do PCB e de movimentos sociais. Estes apostaram em um projeto de desenvolvimento autônomo, intervencionista, reformista e distribuidor de renda.

A verdadeira disputa do período, portanto, não ameaçou a democracia, ao contrário, a energizou, porque escancarou para a sociedade dois projetos de país completamente distintos. As reformas de base de Jango, um projeto de reforma social que contemplou diversos setores, do rural (reforma agrária) ao urbano (reforma urbana), passando pelas propostas de reforma bancária (ampliar crédito aos produtores), eleitoral (voto dos analfabetos), do estatuto do capital estrangeiro (limite à remessa de lucros) e reforma educacional (universalização do ensino público e combate ao analfabetismo) era radical apenas no sentido de ir à raiz dos problemas nacionais. Mas, para as “elites que se consideravam proprietárias da nação” (OLIVEIRA, 2018, P. 46), radicalismo é tudo aquilo que busca modificar a reprodução de seus privilégios. Então esqueçam o “fantasma comunista” instrumentalizado por Lacerda, e por Bolsonaro, para angariar beatos. O que estava (e está) em jogo no Brasil era tão somente uma questão de justiça social e de independência nacional.

É divertido ler que os golpistas derrubaram a democracia por estarem “identificados com os anseios nacionais de preservação das instituições democráticas, ameaçadas pela radicalização ideológica”. Primeiramente, não havia nenhum anseio genuinamente nacional, mesmo porque além de o golpe ter tido amplo apoio financeiro e logístico da CIA, os golpistas estavam em luta contra os nacionalistas, defendendo o capitalismo liberal associado ao capital externo. Ademais, é uma contradição dizer que a democracia foi golpeada para ser “salva”, típico discurso udenista que nunca se conformou de fato com a democracia. O golpe derrubou tanto a democracia política formal (eleições competitivas e oposição política), quanto a tentativa de democratização econômica sintetizada na luta pelas reformas de base. O golpe salvou o caráter oligárquico do Brasil.  O discurso da “radicalização ideológica”, expressão que deve ser lida como sinônimo de “ameaça comunista”, serviu só para legitimar perseguições, cassações, exílios, torturas, censuras e violência política promovidas sistematicamente pela “revolução”.

Comício da Central do Brasil
Comício da Central do Brasil

Vivandeiras têm no discurso econômico o principal argumento para defenderem ainda hoje o legado do regime militar. É inegável que a economia cresceu robustamente na ditadura.  Mas também é inegável que legou hiperinflação e explosão da dívida, o que tornou o regime insustentável. Ademais, a exacerbação do conflito social no seio da República Liberal, que vai de 1946 a 1964, obviamente se explica pelo difícil momento econômico vivenciado pelo governo Jango. Mas não é menos verdadeiro que crescimento econômico na democracia também pode ser robusto, senão vejamos: o crescimento médio do período democrático de Getúlio foi de 6,2%, já o governo JK cresceu em média impressionantes 8,1% ao ano.

Bolsonaristas, filhotes da ditadura, para usar a expressão de Brizola, curiosamente, surrupiam os poucos aspectos positivos da ditadura militar, saudosos que são apenas da vertente repressiva e totalitária do regime. Em que pese incialmente a política externa ter se ligado umbilicalmente aos interesses dos EUA- lembremos da frase de Juracy Magalhães, chanceler de Castelo Branco, “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”-, ao longo do tempo, vai adquirindo maturidade e independência, passando inclusive a se contrapor aos interesses da potência capitalista, ainda no governo Médici e principalmente em Geisel, tornando-se verdadeiramente nacionalista. Na economia, o discurso liberal, que ensejou o golpe, foi progressivamente sendo enterrado pela necessidade de crescimento econômico, que teve no Estado um motor fundamental. Por meio de investimento em obras de infraestrutura e em energia, o regime retomou o desenvolvimentismo característico dos anos 50. Não por outro motivo, o Brasil foi o país que mais cresceu no mundo entre 1930 e 1980.

Nesta semana, iremos assistir ao presidente da República retomar, mais uma vez, o editorial de Roberto Marinho. Que fique claro que sua nostalgia se refere apenas aos aspectos mais fascitóides da ditadura militar, que se empanturrou do “banquete” preparado pelas direitas civis. Espelho dessas direitas, portanto, entreguista, neoliberal e autoritário, Bolsonaro agora devora o Brasil em mais um banquete preparado pelas direitas (militares entreguistas inclusos), 55 anos depois do golpe. Ao torturar o passado, o capitão busca mesmo é exterminar o futuro.

 

REFERÊNCIAS

OLIVEIRA, Francisco de. Brasil: uma biografia não autorizada. São Paulo: Boitempo, 2018.

REIS, Daniel Aarão. Ditadura e democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2014.