Revolução Chinesa e Cooperação Multipartidária

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A China entrou no século XX sob o estigma da humilhação nacional, sendo que parte de seu território, inclusive de sua capital, estava ocupada por oito potências estrangeiras – Inglaterra, Estados Unidos, Alemanha, França, Rússia czarista, Japão, Itália e Áustria.

Entretanto, há 70 anos sob o discurso “O povo chinês se levantou!”, Mao Zedong proclamou a República Popular da China diante do êxito da Revolução Nacional-Popular, a qual liderara após séculos de dominação do solo chinês pelas potências estrangeiras.

Assim, 1949 foi palco da maior revolução anti-colonial do século XX, a qual sintetizou um longo processo de conflitos políticos e armados que expressava um movimento mundial de liquidação dos chamados “Antigos Regimes” iniciados pela Revolução Francesa, em 1789 e aprofundado pela Revolução Russa, de 1917.

De 1952 a 2018, o valor agregado industrial da China aumentou de RMB12 bilhões para RMB30,5 trilhões, 970 vezes a preços constantes, com uma taxa de crescimento média anual de 11%. O PIB aumentou de RMB67,9 bilhões para RMB90 trilhões, um aumento de 174 vezes a preços constantes, com uma taxa média de crescimento anual de 8,1%, e o PIB per capita aumentou de RMB119 para RMB64.644, um aumento de 70 vezes a preços constantes. Além de que de acordo com estatísticas do Banco Mundial, em 2018, a economia da China valeu US $ 13,6 trilhões, perdendo apenas para a economia dos EUA que valeu US $ 20,5 trilhões.

Diante da grandeza histórica do período, além de seus inegáveis desdobramentos na atual condição socio-econômica chinesa que possibilitou desde 1978 a saída de 760 milhões de chineses da pobreza, e desde 1949 que a expectativa de vida do povo passasse de 35 anos, para 77, propomos uma série de três textos comemorativos da data, em que trataremos.

1) dos primeiros passos institucionais após a Revolução e a Cooperação Multipartidária que então se forja e permanece até hoje no seio do Partido Comunista Chinês;

2) acerca da relação entre o processo revolucionário e a futura viabilização e implementação da Reorientação da Estratégia de Desenvolvimento;

3) partindo de um panorama das dinâmicas de acumulação pós-1978, contribuiremos com os dados sócio-econômicos mais recentes do processo de desenvolvimento chinês;

De volta a 1949, o exército camponês de Mao, ao quebrar o imobilismo tradicional[4] da sociedade chinesa, criou as condições políticas necessárias ao rompimento do ciclo de dominação estrangeira, em favor da edificação socialista e da utilização do planejamento econômico e da hegemonia estatal sobre os setores estratégicos da economia, anulando assim o aspecto espontâneo inerente à ação das leis econômicas[5].

Tentando construir a compreensão dos alicerces do processo de desenvolvimento chinês, majoritariamente, se parte da análise de sua dinâmica de acumulação pós-Reorientação da Estratégia de Desenvolvimento, ou seja, a partir de 1978.

Entretanto, esta perspectiva é fundada em uma leitura que compreende a chamada Reforma de Abertura chinesa como o elemento que propiciara, ou ainda, determinara o crescimento nacional de maneira isolada.

Porém, nada no projeto chinês é tão monótono.

Tal leitura expressa a incompreensão, proposital ou não, que circunda o processo de Reorientação chinês, uma vez que o considera como meramente uma combinação de privatizações e desregulamentações, ignorando todo processo histórico em que está envolvida inclusive a viabilização da Reorientação da Estratégia de Desenvolvimento ocorrida em 1978.

Desta forma e retomando os primeiros passos após a proclamação da República Popular da China, em contraponto ao entendimento de que exclusivamente o ano de 1978 seria fulcral, resgatamos neste texto os primeiros passos institucionais após a Revolução de 1949 e buscamos contribuir também para o debate acerca da, popularmente desconhecida, cooperação multipartidária que se se mantém até no bojo do Partido Comunista.

Assim, herdando uma economia falida com taxas crescentes de inflação, agricultura em estado de colapso, sofrendo cronicamente de um sistema de propriedade da terra e exploração arbitrária e desumana, fome nos campos e nulas reservas cambiais, o novo governo inicialmente concentrou seus esforços para reabilitar um país devastado pela guerra civil que ocorrera entre nacionalistas e comunistas no período de 1927 a 1948.[1]

Para viabilizar a institucionalização do novo Regime, foi fundada pelo Partido Comunista da China uma Conferência para reunião de toda frente ampla que legitimava e sustentara a proclamação de sua República Popular. A Conferência foi denominada de Conferência Consultiva do Povo Chinês e reuniu delegados de mais de 20 organizações, grupos e “partidos patrióticos democráticos”.

Assim, a Conferência Consultiva Política do Povo Chinês (CCPPC)[3] se forja sobre a política maoísta de 16 caracteres[4] enquanto um órgão importante de cooperação multipartidária e consulta política sob a liderança do Partido Comunista da China, sendo expressão da democracia socialista e, definitivamente, um arranjo institucional com características chinesas que tem como os principais pilares a democracia e a unidade[5].

A CCPPC tem, desde então, formado o símbolo da propaganda da coexistência do PCC com outras organizações e partidos.[6]

Documento oficial da época narrou que a Conferência foi composta por mais de seiscentos delegados, representando todos os partidos democráticos e organizações populares da China, o Exército de Libertação Popular, as várias regiões e nacionalidades do país e os chineses estrangeiros, demonstrando a unidade do povo chinês.

Fruto dos esforços da Conferência foi a construção de um documento síntese nomeado de “Programa Comum”[9]. Este permaneceu em vigor de 1949 a 1954, ano em que fora promulgada a nova Constituição da República Popular da China.

Desta forma, o Programa serviu como um documento de transição para institucionalização do Regime e que marcou os primeiros passos inclusive para ser possível um consenso para materialização da nova Constituição.

Importante salientar que mesmo após o fim da vigência do Programa Comum determinou-se a permanência da Conferência que estabeleceu assim, uma série de comitês locais, respectivamente, em todas as províncias, regiões autônomas e municípios diretamente sob o Governo Central.

Segundo o Programa, a economia deveria consistir em três setores: o setor estatal, no qual o governo controlaria as grandes indústrias, as minas, empresas públicas e empresas de serviços públicos; o setor agrícola, composto por fazendas individuais que seriam gradualmente transformadas em unidades coletivas; o setor privado, constituído por empresas de médio porte que permaneceriam nas mãos de pequenos e médios capitalistas.

Dos três, o setor estatal deveria assumir a posição de liderança econômica, combinando os papéis de motor e catalisador no processo produtivo nacional para evitar o ressurgimento do setor privado, fonte das “antigas relações de produção” superadas durante a revolução.[11]

No que se refere ao setor agrícola, como em outras partes do Terceiro Mundo, a Reforma Agrária era uma questão central na revolução chinesa e, em geral, sobre a qual seu sucesso se baseava.

Assim, o artigo 27 do Programa dispôs expressamente que a reforma agrária era condição necessária para o desenvolvimento das forças produtivas nacionais e sua industrialização.

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Neste sentido, a Lei de Reforma Agrária[13] aprovada no início dos anos 50 tinha três objetivos: (i) a abolição do sistema de propriedade feudal e a neutralização dos proprietários rurais; (ii) a redistribuição da terra para os camponeses pobres que eram o núcleo principal da população rural; (iii) a proteção dos interesses dos pequenos e médios agricultores e o seu isolamento da influência dos proprietários de terras, de modo a assegurar o fornecimento de alimentos à população chinesa[14].

A Reforma confiscou terras dos grandes proprietários e as redistribuiu para cerca de 300 milhões de camponeses pobres e médios, sendo que em menos de três anos mais de 50% das terras mudou de mãos e o número de camponeses pobres se reduz de 60% para 30% no total da população.[15]

Retomando a questão referente à cooperação multipartidária e o sistema político consultivo, esses se caracterizam como a base do sistema político chinês.

Desta maneira, o sistema de cooperação multipartidária consiste nos oito partidos democráticos, organizações civis, minorias étnicas e congeneres que, sob a liderança do PCC, se configuram como “partidos participantes” cooperando com o Partido Comunista e participando da administração da República Popular da China.

“The fact that the people are the masters of the country is the essence and core of socialist democracy. In the practice of developing socialist democratic politics, the realization of the people’s mastery of the country has formed two important forms of democracy. One is that the people exercise their rights through elections and voting, that is, electoral democracy, embodied in the people’s congress system; the other is that all aspects of the people’s internal parties are fully consulted before major decisions, that is, deliberative democracy, embodied in the multi-party led by the Communist Party of China. Cooperation and political consultation system. This basic political system and the people’s congress system complement each other, enabling all democratic parties and non-party members to participate in the management of state and social affairs, and to incorporate the political demands of different classes and different social groups within the people into the political system. Expression, thus maximizing the realization of the people’s democracy.”[16]

O sistema de política consultiva é organizada na forma da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês, sendo que a consulta política trata-se do conteúdo político e a forma organizacional mais importante de cooperação multipartidária liderada pelo Partido Comunista. A CCPPC, segundo documento de seu Escritório do Comitê Nacional, as principais funções do Conferência são (i) a consulta política, (ii) a supervisão democrática e (iii) participação política.

Para executar tais funções estabeleceu-se um sistema de encontros, ou reuniões do Comitê Nacional da Conferência que incluem: o Sistema De Plenário; O Sistema De Comitês Permanentes; O Sistema De Reunião De Chefes; O Sistema De Reunião De Secretário-Geral; E O Sistema De Reuniões De Comitês Especiais.

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Além destas reuniões existem outras formas de consulta política e exercício das demais funções como simpósios consultivos, reuniões para exposição e etc.

Por exemplo, a Sessão Plenária é o encontro de mais alto nível, uma vez que ocorre em conjunto com o Congresso Nacional do Povo anualmente em março. As discussões e consultas centrais da Reunião Plenária do Comitê Nacional giram em torno dos seguintes documentos: Relatório de Trabalho do Governo; Plano Nacional e Relatório de Orçamento; Relatório de Trabalho do Supremo Tribunal Popular; Relatório de Trabalho da Procuradoria Popular Suprema e outros relatórios importantes.

Já o Sistema de Comitês Permanentes é a principal forma de consulta política. Assim, o Comitê Permanente do Comitê Nacional da CCPPC realiza-se quatro vezes por ano, sendo suas principais tarefas: receber e analisar relatórios do Comitê Central do Partido Comunista da China e do Conselho de Estado; discutir as principais políticas nacionais; revisar propostas e relatórios de pesquisas; e sistematizar e analisar o trabalho da CPPCC.

Diante deste breve panorama acerca do sistema político chinês é possível perceber que o Partido Comunista e a administração estatal chinesa não é tão monolítica quanto nossa perspectiva ocidental nos faz crer.

Diferentemente da cultura e funcionamento partidário ocidental, o Partido Chinês funciona como órgão mediador de uma ampla frente política, no âmago do qual os conflitos políticos ocorrem, se digerem e tornam-se política. Relevante expressão disso é o fato de que, a partir de 2.000, o Partido passou a possibilitar a filiação de empresários.

Referências:

[1] GONÇALVES, A. Chinas swing from a planned soviet-type economy to an ingenious socialist market economy: an account of 50 years. Working Papers Series, Social Sciences Research Network, 2006.

[2] HE, Jiangsui. Identifying mistakes to discipline a New State: The rectification campaigns in China’s land reform, 1946-1952. PhD, University of California, 2008, p. 9-10.

[3] Cf. The common program of the chinese people’s political consultative conference, 29 set. 1949.

[4] “The General Outline of the Statutes of the Chinese People’s Political Consultative Conference stipulates that the CPPCC promotes the participation of all parties and non-partis parties of the Chinese People’s Political Consultative Conference in accordance with the principle of long-term coexistence, mutual supervision, courage, and dissatisfaction between the Communist Party of China and various democratic parties and non-party members. The unity and cooperation of the people fully reflects and exerts the characteristics and advantages of the socialist party system in China. The 16-character policy of “long-term coexistence, mutual supervision, courage, and honor and disgrace” is the basic policy of cooperation between the Communist Party of China and various democratic parties. This policy was supplemented and perfected based on the principle of “long-term coexistence and mutual supervision” proposed by Mao Zedong in 1956, based on the fundamental changes in China’s class relations, combined with the new situation and new tasks in the new era of socialist construction. This policy fully reflects the relationship between China’s new socialist parties.”

[5] Introdução à Conferência Consultiva Política do Povo Chinês.

[6] GONÇALVES, op. cit., 2006.

[7] The chinese people have stood up!, 21 set. 1949.

[8] The Common Program of the People’s Republic of China 1949-1954: the first plenum of the CPPCC of September 21, 1949 – September 30, 1949.

[9] Cf. ENLAI, Zhou. Characteristics of the draft common programme of the people’s political consultative conference, 22 set. 1949.

[10] A Brief History of the CPPCC. 2012.

[11] GONÇALVES, op. cit., 2006.

[12] ARTICLE 27. Agrarian reform is the necessary condition for the development of the nation’s productive power and for its industrialization. In all areas where agrarian reform has been carried out, the ownership of the land acquired by the peasants shall be protected. In areas where agrarian reform has not been carried out, the peasant masses must be set in motion to establish peasant organisations and to put into effect the policy of “land to the tiller” through such measures as the elimination of local bandits and despots, the reduction of rent and interest and the distribution of land. The Common Program of the People’s Republic of China 1949-1954: Preamble and Chapter 1 of the Common Program.

[13] “Following the liberation of China in 1949, the central government of the People’s Republic of China published a Land Reform Law on June 30, 1950. The law abrogated ownership of land by landlords and introduced peasant landownership. During the winter of 1950-51, land was confiscated from former landlords and redistributed to landless peasants and owners of small plots, as well as to the landlords themselves, who now had to till the land to earn a living. The reform liberated productive forces, increased the productivity of agriculture, and laid the basis for the industrialization of China. The law defined the principles and methods for the expropriation and re-allocation of land. It protected the interests of rich peasants, middle peasants (meaning self-sufficient peasants) and renters of small plots, as well as the national bourgeoisies, so as to preserve and develop the productive forces as rapidly as possible. Nearly 310 million people were involved in carrying out land reform movement in the newly liberated areas. Around 300 million peasants who had little or no land were assigned some 47 million hectares of land plus farm implements, livestock and buildings. The peasants were relieved of rent payments equivalent to 35 billion kilograms of grain per year. By the spring of 1953, with the exception of Taiwan and the ethnic minority regions of Xinjiang and Tibet, land reform was basically complete, and the peasants had achieved genuine liberation. The feudal system of landownership that had existed for more than 2,000 years was completely destroyed and the landlord class was eliminated.” 1950: The Land Reform, 15 set. 2009. The agrarian reform Law of the people’s of China. Peking: Foreign Languages Press, 1950.

[14] GONÇALVES, op. cit., 2006.

[15] ANDRADE, Everaldo de Oliveira. A Revolução Chinesa.

[16] People’s Daily. The basic political system is an important form of democracy. Central Government Portal