Entre destruição e valorização nacional: a nonagenária Revolução de 30 e sua importância para o Brasil

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Por Itamá do Nascimento – “A história é sempre contada pelos vencedores”, quem nunca escutou essa frase? Pois bem, ela serve para iniciarmos um breve (e não menos importante) debate sobre a importância da nonagenária Revolução de 30. No dia 03 de novembro de 1930, por volta das 15h, Getúlio Vargas chegava oficialmente ao poder após recebê-lo de uma Junta Militar. Esta Junta Militar, passou a governar o país após a vitória de um movimento político que impediu a posse de Júlio Prestes, então Governador de São Paulo, à Presidência da República. Esse movimento ficou conhecido como Revolução de 30, iniciada em 03 de outubro e finalizada em 03 de novembro do mesmo ano. A posse de Vargas no Palácio do Catete, representava o fim da República Velha, a mesma que por meio de fraudes eleitorais governou o Brasil com base na alternância de poder entre políticos paulistas e mineiros. Porém, mais que uma sucessão na história, essa posse representou o gérmen de um novo Brasil que, mesmo mantendo o poder das oligarquias rurais, caminhava para uma série de mudanças sociais significativas.

A primeira iniciativa desse Governo Provisório, chefiado por Vargas, já demonstrava o novo caminho que o país começava a trilhar. Nos dias 14 e 26 de novembro, respectivamente, eram criados os Ministério da Educação (então Ministério dos Negócios da Educação e Saúde Pública) e do Trabalho (então Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio). Em um país de herança escravista, encontrar um movimento político que tinha como uma de suas primeiras iniciativas a criação desses dois ministérios, evidencia não só à natureza deste movimento como os interesses daqueles que procuram rebaixá-lo. A educação (tratada como luxo da elite) e o trabalho (altamente explorado e sem participação do Estado na busca de sua regulamentação), passaram a ser tratados como responsabilidade do Estado. Tais medidas representavam, concreta e simbolicamente, um pagamento de uma dívida social herdada do escravagismo colonial/imperial e da indiferença que marcou a Primeira República (1889-1930). Era o início da educação pública e da proteção ao trabalho como direitos sociais universais. De forte inspiração e participação tenentista, apesar de conter outros setores como as dissidentes oligarquias mineira e gaúcha, a Revolução de 30 foi o pontapé inicial do que conhecemos como Era Vargas. Considero que a Era Vargas (e não tem esse nome à toa), iniciou em 1930 e só foi derrubada da cena política nacional após o golpe civil-militar de 1964, responsável pela queda de João Goulart, então o principal pupilo de Vargas e que tinha como compromisso (através das Reformas de Base) intensificar um processo iniciado pela Revolução de 30.

Getúlio Vargas Revolução de 30

E qual seria esse processo e seu principal objetivo? Esse processo político, tendo a Revolução de 30 como carro chefe, buscou essencialmente a garantia de direitos políticos/sociais, assim como visou uma maior participação das massas populares na política nacional. Por conseguinte, seu principal objetivo foi a estruturação e/ou construção de um capitalismo autônomo e tipicamente nacional. Um capitalismo que projetasse as massas populares na cena política, através de ações como a legalização da organização sindical, e o Brasil no cenário internacional. Mesmo que contraditória e parcialmente, tais objetivos foram alcançados no período de 1930 a 1964. No que tange a participação das massas populares, já foi dito acima a importância e relevância da organização sindical, finalmente institucionalizada em março de 1931, através do decreto-lei nº 19.770. Porém, além disso a Revolução de 30 conseguiu colocar a classe trabalhadora e a classe média como importantes atores políticos, ao garantir o voto secreto, criar a Justiça Eleitoral e atender pautas como as leis trabalhistas (carteira de trabalho, férias remuneradas, 13º salário, direito à greve, direito a organização sindical etc) que mostravam a efetividade e potencialidade da luta desses trabalhadores. No tocante as garantias eleitorais, suspensas apenas durante o Estado Novo, possibilitaram aos trabalhadores, através do voto, barrar projetos políticos antinacionais, vide as consecutivas derrotas da União Democrática Nacional (UDN) nas eleições presidenciais pós-1945.

Com relação a construção do capitalismo autônomo, a Era Vargas iniciada pela Revolução de 30, conseguiu liderar conquistas nunca vistas antes na história do país. Foi o período da criação da Petrobrás, Vale do Rio Doce, Eletrobrás, Companhia Siderúrgica Nacional, Fábrica Nacional de Motores, Hidroelétrica do Vale do Rio São Francisco etc. Além da fundação de instituições que visaram o desenvolvimento intelectual do país, como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). O “Brasil Moderno”, iniciado pelo processo de industrialização e urbanização, desenvolvido pela Revolução de 30, foi responsável pela formação de uma intelectualidade nacional preocupada com a formação histórico-social brasileira. Foi a partir de 1930, diante deste novo cenário nacional, que surgiram intelectuais do porte de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Florestan Fernandes, Alberto Pasqualini, Guerreiro Ramos, Nelson Werneck Sodré, Jorge Amado e tantos outros (as). Além, claro, da projeção internacional do Brasil que nunca se desenvolveu (do ponto de vista econômico e social) tanto como no período de 1930-1964. A participação na Segunda Guerra Mundial foi o marco de uma nova posição internacional de um país, tratado como uma potência regional de aspirações globais. Simbolicamente, a escolha do Brasil como país-sede da Copa do Mundo de 1950 (a primeira realizada no pós-guerra), mostra o prestígio do país que havia recentemente saído do chamado primeiro governo Vargas (período de 1930 a 1945, passando do Governo Provisório até o Estado Novo).

Diante da grandeza desse legado, a Revolução de 30 e a Era Vargas que ela gerou, acabou recebendo ataques de diversos atores e setores. Os liberais, vinculados a oligarquia paulista nostálgica dos tempos da escravidão, jamais perdoaram a realização de tais feitos e sempre buscaram a destruição simbólica e política de tudo que foi construído a partir de 1930. Esses liberais, através de setores da classe dominante, políticos e intelectuais, em aliança (consciente ou inconsciente) com alguns comunistas, buscaram destruir a Era Vargas de várias formas. Do ponto de vista político, os liberais foram responsáveis pela Contrarrevolução de 1932 liderada por São Paulo (estado mais beneficiado pela República Velha) e pelo golpe de Estado de 1964 (assim como por tentativas golpistas anteriores, vide o segundo governo Vargas e o período JK). Já os comunistas, foram responsáveis pela Insurreição Comunista de 1935 que, sem base social e consequentemente fracassada, tentou derrubar violentamente Vargas. Já do ponto de vista simbólico e intelectual, esses dois grupos dialogam nas críticas a Revolução de 30 e a Era Vargas.

A primeira crítica, comum entre liberais e comunistas, é a interpretação da Revolução de 30 como um mero golpe de Estado. De fato, a Revolução de 30 foi um golpe de Estado que impediu a posse de Prestes, eleito mesmo que por meio de fraude eleitoral. Mas qual processo revolucionário e de ruptura não é iniciado por intermédio de um golpe de Estado? Juridicamente falando, toda e qualquer revolução (seja uma revolução pelo alto ou por baixo), prescinde de um golpe no que existe de anterior. A Revolução Francesa de 1789 (exemplo de revolução pelo alto) e a Revolução Russa de 1917 (exemplo de revolução por baixo), não golpearam pela força o que existia? Possivelmente, questionarão: “Dessa maneira, o golpe civil-militar de 1964 foi uma revolução, inclusive, se reivindicando como tal”. Diante desse argumento, questiono: mas não seria à prática, o critério da verdade? Independente dos militares golpistas de 1964 se intitularem revolucionários ou não, o fato histórico que é o acontecimento golpe civil-militar de 1964, não desencadeou um processo revolucionário de mudanças sociais significativas e progressistas para o Brasil. Pelo contrário, seu teor era essencialmente antirrevolucionário, seja combatendo o comunismo (que visava uma revolução contra a ordem) ou o trabalhismo (que visava uma revolução dentro da ordem). Diferente de 1964, a Revolução de 30 realmente passou do posto de golpe para revolução, ao desenvolver uma série de transformações de cunho progressista que tive a oportunidade de citar algumas acima. Por essas razões, os que se enxergam herdeiros da Revolução de 30, devem criticar aberta e duramente às interpretações que limitam este movimento a um golpismo.

Além de buscarem retirar o posto de revolução desse movimento, eles desenvolveram outros ataques como a vinculação rasteira de Vargas ao fascismo. Essa visão irresponsável, superficial e tendenciosa busca manchar a biografia da maior liderança política desenvolvida pela Revolução de 30. Mesmo sem nenhum escrito ou discurso de Vargas em que este declare abertamente seu alinhamento ao fascismo, eles cogitam tal aproximação através de ações como a subordinação dos sindicatos ao Estado, as relações amistosas entre Brasil, Alemanha e Itália antes da guerra e, sempre que possível, levantam o caso Olga como demonstrativo. É claro que a subordinação dos sindicatos ao Estado (ou melhor, ao Ministério do Trabalho), foi uma limitação da Era Vargas. Entretanto, não podemos desconsiderar sua importância para aquele contexto histórico específico. Além do mais, qual a comprovação de que essa ação se inspirou na Itália fascista? Será que apenas na Itália os sindicatos eram vinculados ao Estado ou o caso brasileiro foi mais um a seguir uma tendência da época? As supostas relações amistosas entre Brasil, Alemanha e Itália, escondem: a) as relações diplomáticas que o Brasil deveria manter com dois países europeus que, naquela época, ainda mantinham relações com todo o mundo, inclusive com os EUA e a URSS com quem a Itália fascista construiu uma frutífera relação comercial; b) as tensões que existiram entre esses países, em particular Brasil e Alemanha, sendo a expulsão do embaixador Karl Ritter e a repressão a colônias alemãs no sul do país. Esses são dois “esquecimentos” mostram como essas análises são superficiais e tendenciosas.

Por fim, o caso Olga, tratado de forma sensacionalista, também esconde nuances. Primeiro ponto é que o levante de 1935, tinha estreita ligação com a URSS. Ou seja, tratou-se de um levante à serviço de uma potência estrangeira. A própria ligação da Olga com a III° Internacional, comprova este fato histórico. Se nos levantamos, principalmente os comunistas, contra intervenções norte-americanas pelo mundo, qual a razão de relativizar quando essa intervenção vem de um país socialista? Além do mais, Olga foi deportada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) (e não diretamente por Vargas) com base em elementos jurídicos que deportavam estrangeiros em atividade política no Brasil, desde antes de 1930. Outro ponto, desconsiderado pelos sensacionalistas de vermelho (que não são tão sensacionalistas assim, quando o assunto são os processos revolucionários socialistas) é que na época da deportação, o mundo inteiro (inclusive, a URSS) mantinha relações diplomáticas com a Alemanha Nazista, palco até de Olimpíadas em 1935. Por qual motivo Vargas, pressionado pelas Forças Armadas e diante de um levante que, se bem sucedido, não pouparia sua vida manteria Olga no Brasil? Os comunistas, ao invés de investirem na auto-crítica do levante de 1935, baseado numa interpretação exportada por país, buscam vincular ao fascismo uma figura que não só foi vítima do imperialismo nos anos 1950 como liderou uma série de mudanças até hoje defendidas pelos próprios comunistas, como a defesa das estatais estratégicas e dos direitos trabalhistas. Direitos esses, tratado como “corporativistas” pelos liberais, que aproveitam essa vinculação esdrúxula para tratarem como sinônimo de atraso as leis trabalhistas garantidas pela Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT).

Também cabe menção aos correntes ataques contra a Era Vargas, por conta de seu autoritarismo. Vale lembrar que, se tomarmos a Era Vargas de 1930 a 1964, o único período ditatorial visto foi entre 1937 a 1945, anos do Estado Novo. Ou seja, num período de 34 anos, apenas 08 o Brasil da Era Vargas foi marcado por uma ditadura. Ademais, o autoritarismo presente em Vargas, é fruto das suas origens políticas e sociais. Vale lembrar que ele foi um homem proprietário de terras do final do século XIX e que finca raízes na política local de Júlio de Castilhos e Borges de Medeiros, figuras altamente influenciadas pelo centralismo positivista. A noção de democracia liberal, como entendemos hoje, ainda não estava alicerçada no Brasil dos anos 30 e 40 (pegando aqui o período em que se insere o Estado Novo) e no mundo. Se tratando de um país subdesenvolvido e latino-americano, o Brasil sob Vargas conseguiu avanços democráticos importantíssimos, como o direito ao voto feminino, conquistado primeiro que países como a França. Se tomarmos a história do Brasil, a Constituição de 1934 foi certamente a mais democrática do país até aquele instante e, apesar do recuo visto na Constituição de 1937, Vargas retorna ao poder em 1951 respeitando as regras do jogo e sendo ele vítima de articulações golpistas que o levaram ao suicídio. Já se tomarmos um recorte mundial, podemos fazer a seguinte pergunta: qual democracia sólida existia no mundo entre 1937 a 1945, período da ditadura do Estado Novo? Vargas foi produto de um determinado período histórico em que o prezo pela democracia, como a entendemos na contemporaneidade, não era um valor universal. Mesmo diante disso, conseguiu democratizar a sociedade brasileira, liderando importantes conquistas sociais para os setores historicamente excluídos e marginalizados.

Se os liberais (importadores das ideias norte-americanas) e os comunistas (importadores das ideias soviéticas) não souberam ou não quiseram interpretar devidamente a Revolução de 30, os herdeiros desta não podem deixar de disputar a narrativa histórica, deixando-a nas mãos dos vencedores. O legado da Revolução de 30 e da Era Vargas é atacado duplamente no país, seja por intermédio político (como o golpe de 1964 e o neoliberalismo da Nova República) ou intelectual (como as expressões à direita e à esquerda da USP, principal polo intelectual opositor da Era Vargas). Faz-se necessário olhar, sim, criticamente para esse movimento mas sem a reprodução de ataques tendenciosos (camuflados de críticas teóricas) ao projeto político nacionalista e popular, desencadeado a partir de 1930. O olhar crítico a Revolução de 30 como um mero golpe, a vinculação mecânica de Vargas ao fascismo, a ideia das leis trabalhistas como sinônimo de corporativismo fascista e a teoria do populismo são tarefas necessárias.

Aqui encerro, defendendo a Revolução de 30 como uma espécie de revolução burguesa aos moldes nacionais, porém, ainda incompleta e inacabada. Uma revolução pelo alto, liderada por um fazendeiro gaúcho, que foi responsável por tudo de estrutural que temos hoje no país. E se muitos setores da esquerda, vangloriam tanto os 13 anos do Petismo, mesmo diante de conquistas não estruturais, qual a dificuldade de romper com a dependência intelectual e começar a enxergar sob novas lentes o que considero como o principal período da história brasileira? As revoluções burguesas só servem se forem europeias, ou melhor, francesa? Criando uma dominação burguesa-oligárquica, mantendo o poder do latifúndio e ao mesmo tempo oferecendo avanços sociais significativos para os trabalhadores urbanos, a Revolução de 30 é considerada neste texto como a nossa Revolução Francesa, necessitada de resgate e completude. As atuais reformas da previdência e trabalhista, com extinção do Ministério do Trabalho em 2019, mostram quem são os interessados em destruir o pouco de Estado de Compromisso fundado no Brasil a partir de 1930. Que esse texto também possa fazer comunistas e demais setores críticos da Era Vargas na esquerda, a refletirem sobre o período com verdadeira autonomia intelectual. Entre a destruição e a valorização nacional, fico com o reconhecimento da importância da Revolução de 30, então construtora de um Brasil que almeja a modernização e autonomia.

Por Itamá do Nascimento