A sanha privatista que ameaça a democracia

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A sanha privatizante e sua hipocrisia parecem não ter mais limites e crescem como ameaça à própria democracia. Pensamento, valores, ações e políticas nessa linha de desmantelamento dos princípios republicanos do estado capitalista ocidental (e estou me limitando à sociedade existente e não outra possível e desejável) sinalizam a incompatibilidade entre privatização e os pilares mínimos do regime democrático num contexto inédito da voracidade neoliberal.

No auge do receituário neoliberal do Consenso de Washington dos anos 1990 o pudor dessa sanha admitia até debater diferenças entre os chamados “serviços essenciais” a serem prestados pelo estado e serviços públicos que poderiam ser delegados a grupos privados para tornar aqueles mais eficientes – o que se provou depois ser uma mentira. Hoje essa farsa perdeu totalmente a vergonha e está dando uma grande banana para a democracia e suas institucionalidades de promoção e proteção da res pública para o que se pode conceber ser uma sociedade civilizada.

Exatamente isso: segundo esses valores e ações, tudo deve ser privatizado numa sociedade que vai adoecendo de forma truculenta e devastadora em contraste com a suposta realidade exposta pelos discursos pomposos e grandiloquentes de governantes, análises técnicas de especialistas e relatórios de agências de risco. Privatizar tornou-se o verbo da verdade irrefutável e da eficiência, não bastassem o desastre produzido pelo Consenso de Washington na América Latina e também até em países da Ásia que estavam indo bem com suas economias e se deram mal, por exemplo, depois da desregulamentação do mercado de capitais imposto pelo rentismo financeiro internacional.

Não me refiro nem às duas áreas mais básicas, elementares e óbvias – saúde e educação –, embora elas estejam interpenetradas no objeto enfatizado nessa reflexão. A doença não é para menos diante da mais recente novidade no Brasil (não tão nova assim, é verdade), que é a ideia de privatização de presídios.

Ao se pensar em presídio como negócio privatizável, consequentemente lucrativo, só se pode estar tendo como perspectiva o aumento de pessoas a serem encarceradas. Qual o interesse de um empresário em assumir um presídio a não ser o de fazer dele um negócio crescentemente lucrativo? Em 1993 havia 8,3 mil presos no sistema penitenciário do Rio de Janeiro. Hoje são mais de 51 mil. Tenho que concordar, pois, com aqueles que dizem que a violência nas ruas não acontece por “ausência de uma política adequada de segurança pública” – mas sim porque a violência é, isto sim, a própria política deliberada e imposta da insegurança e do salve-se quem puder.

Na minha época de repórter, pelo idos dos anos 80/90, havia apenas um presídio em Bangu, que era conhecido simplesmente como “Bangu”. Costumávamos dizer: o sujeito foi levado para Bangu. Hoje há um complexo de presídios naquele bairro da zona oeste da cidade. Se na França, uma universidade cresce e vai se constituindo como Paris I, Paris II, Paris III, etc., no Rio de Janeiro o complexo de presídios se desenvolve como correspondentes a Bangu 1, Bangu 2, Bangu 3 etc.

Chega a ser assustador e aterrorizante o que parece “natural e evolutivo”, situação que se pode classificar, esta sim, de terrorismo do estado capitalista.  Ou seja, políticos e autoridades se gabarem de construírem mais presídios, com modernas tecnologias, ao longo dos anos como resposta aos problemas. “Natural e evolutivo” no sentido da crença vulgar segundo a qual essa situação seria consequência inevitável dos problemas decorrentes de uma sociedade cada vez mais complexa.

Não à toa, portanto, a ideia de privatização de presídios num país que possui a terceira população carcerária do mundo. Se tivéssemos como registro de referência algum possível debate sobre o que é ou não privatizável, como era comum na década de 1990, costumo comparar com os serviços funerários. Talvez o cemitério, sim, seja negócio rentabilíssimo e duradouro, uma vez que todos morreremos no curto e longo prazos. Mercado garantidíssimo do agora e do eterno.

O que devemos esperar, por outro lado, de uma sociedade que assume a sanha da privatização também de presídios com a maior naturalidade porque assim “funciona” nos Estados Unidos? O que devemos esperar , a não ser que haja mais gente a ser encarcerada a cada ano, a cada década, a cada geração? Uma sociedade que pensa assim tem como perspectiva e projeto não só a “produção” de novos criminosos dos crimes já conhecidos, mas também a tipificação de novas situações como crimes para tornar o negócio sempre rentável.

A hipocrisia é imanente à própria situação do político privatista. Enquanto ele figura na democracia como agente político, representante público eleito, com base em princípios liberais e republicanos, age e funciona, na verdade, como um agente de interesses privados, espécie de negociante, que não têm nada a ver com os interesses dos eleitores e da sociedade como um todo.

O ápice no céu que esconde o inferno ou o fundo do abismo deste processo talvez fosse o escancaramento da verdade privatista, qual seja, não esse sistema de democracia de fachada, mas sim o leilão de cargos públicos eletivos. Obviamente, os lances seriam diferenciados, sendo o cargo de presidente com preço mais alto, descendo o valor dos lances mínimos numa escala baseada em critérios rigorosos para governador, prefeito e parlamentares em geral.

Os cidadãos não precisariam ir mais às urnas e o eleitor seria uma categoria histórica do passado. Os leiloeiros dos cargos eletivos seriam formados por uma banca de notáveis de reconhecida competência no mercado financeiro, certificados talvez por um organismo internacional, para não sofrer pressões de grupos populistas internos e corruptos.

Não teríamos mais posse no cargo, mas sim outorga, e esta seria concedida aos representantes de grupos financeiros que oferecessem o maior valor de lance. Estes deveriam comprovar “competência” e experiência para gerir sabe-se lá que tipo de sociedade em que a liberdade e a igualdade dos indivíduos continuariam como sofisticados elementos retóricos da ilusão de ser alguma coisa – cada um feliz em sua rotina conhecendo o mundo pelo whatsApp e por diferentes aplicativos do celular.

Alguma coisa – isso que chamaríamos indivíduo – que prestasse em vida, encarcerado ou não, e também na própria morte, pois, nessa sociedade sincera (porque eficientemente competitiva), os donos de presídios talvez concorressem com os donos de cemitérios, que talvez concorressem com os donos da indústria farmacêutica, que talvez se associassem aos donos da indústria armamentista, que, certamente, teriam como sócios grandes empreendedores da comunicação e da cultura. Quem sabe…

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