Considerações sobre a política de cotas no Brasil

Josué Bengtson, ex-deputado federal pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e pastor de uma igreja evangélica, afirmou em uma pregação que “jamais entraria em um avião pilotado por cotista”, e prosseguiu “por isso, que às vezes, cai algum avião. 99% das vezes a culpa é do piloto”. Na sequência, perguntou aos fiéis “se aceitariam ser operados por uma pessoa que ingressou na universidade com cota? Ele não passou, porque tem que deixar uma vaga para negro, para índio…”.

A fala proferida por Josué Bengtson representa a mentalidade de uma parcela da sociedade brasileira que insiste em desvalorizar a importância das políticas de cotas, sob o argumento de que cada pessoa deve se esforçar e não viver de esmolas ou favores do Estado, bem como das ideias em favor da mitigação de direitos sociais e includentes. Bengtson afirmou que “a meritocracia tem que funcionar pelo esforço”.

Mesmo assim, essas opiniões ou informações falsas são armas utilizadas para disseminar ódios e preconceitos racistas, além de reproduzir a lógica de acesso a universidades ou concursos públicos pela meritocracia. Ou seja, cada pessoa deve se esforçar para conseguir a sua vaga, já que todos estão em suposta situação de igualdade.

Também é a ideia de um grupo que não quer abrir mão dos seus privilégios, e que argumenta que as políticas de cotas aumentam os gastos públicos e desqualificam o ensino ou a prestação de serviço por parte do cotista. Quer dizer, inferioriza a produção e a capacidade intelectual dos cotistas.

Então, para essas pessoas imbuídas da intenção de se posicionarem contra as políticas de cotas, é importante mencionar alguns pontos. O primeiro é que as políticas de cotas, tanto para universidades quanto para concursos públicos, não afastam a meritocracia. O candidato à vaga na universidade ou em um concurso público tem o mérito de estudar da mesma forma que qualquer outro candidato que esteja concorrendo pela “ampla concorrência”, pois só é classificado se atingir a nota mínima determinada pela comissão do vestibular ou do concurso.

O segundo é que cotas sociais e cotas raciais possuem a finalidade de repararem as disparidades diferentes: enquanto a cota social avalia a situação econômica do candidato e visa a permitir acesso à vaga mesmo em situação financeira desfavorável e de ensino médio em escola pública; a política de cota racial garante que negros e indígenas tenham acesso a espaços massivamente composto por brancos, em razão do racismo estrutural existente, e que se manifesta independentemente da condição econômica, ou seja, pela cor da pele. Esse é o motivo pelo qual, no Brasil, é legítimo e necessário haver as duas políticas de cotas: social e racial. Nesse sentido, as políticas de cotas retiram os monopólios elitista e racista de espaços de produção científica como a universidade (Lei n. 12.711/2012), e de cargos alcançados por concursos públicos federais (Lei n. 12.990/2014). O mérito de candidatos aprovados por cotas é até maior do que o dos candidatos não-cotistas, porque os cotistas saem de uma realidade que, em regra, não favorece a sua dedicação exclusiva aos estudos, porque, além de estudar, têm de trabalhar e enfrentar as manifestações racistas. Por outro lado, o candidato da ampla concorrência tem a oportunidade de estudar, sem preocupações com a sua alimentação, vestimenta e tampouco com sua posição social, pois há uma outra pessoa que financia sua condição privilegiada.

O terceiro ponto é que todos os dados das universidades comprovam que os discentes que ingressaram pelo programa de cotas têm apresentado alto rendimento acadêmico, o que rechaça a falácia de que as cotas provocam queda no padrão acadêmico da universidade e que os cotistas são incapazes de atuarem nas áreas escolhidas. A Universidade de Campinas (Unicamp) publicou que “o rendimento dos alunos da Unicamp que ingressaram na Graduação por meio das políticas de inclusão foi similar ao desempenho de outros alunos da Universidade. Esta é a conclusão de um estudo desenvolvido pela coordenadoria de pesquisa da Comissão Permanente para os Vestibulares (Comvest)”.[1] No mesmo sentido se manifestou a Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP), ao afirmar que “os alunos que entram por cotas nas universidades públicas têm notas similares às dos demais estudantes, e tampouco apresentam uma taxa de evasão significativa. Tendem também a ter um desempenho melhor que os demais ao longo do curso. No entanto, o apoio financeiro, entre outras medidas que facilitem a adaptação deles, é fundamental para garantir o êxito dos programas.”[2]

E quarto ponto, como as vagas para universidades públicas e para os cargos públicos já existem, não há razão para alegações de aumento de gastos públicos, vez que a política de cotas reserva parte das vagas existentes, ou seja, não exige a criação de novas vagas, de modo que o não existe custo adicional para implementação de uma política de cotas.

Desta forma, o desvirtuamento da concepção das políticas de cotas socais e raciais acontece como uma estratégia de mitigar as lutas em favor da inclusão dos grupos desfavorecidos, e perpetuar a perversidade das discriminações. Mas esse comportamento não surgiu com Bengtson.

Gilberto Freyre (1900-1987) escreveu a obra Casa Grande e Senzala (1933) baseado em suas percepções da sociedade a partir de sua posição social como homem branco, machista, racista e elitista, e apresentou uma narrativa sobre os benefícios da miscigenação, da vida escrava e dos bons relacionamentos entre os escravos e os donos de engenho, afastando toda luta de resistência da população negra, bem como os horrores perpetrados no regime escravocrata. Além disso, negou a existência do racismo e apresentou o Brasil como uma democracia racial.

A seguir, os governos da Era Vargas (1937-1945) e da Ditatura Militar (1964-1985) também mitigaram as lutas em favor dos grupos vulneráveis, e definiam como inimigo todo aquele que fosse contrário a suas decisões políticas.

Em 2017, o então parlamentar Jair Bolsonaro, atual Presidente do Brasil, se referiu aos quilombolas como a animais, dizendo que eles “não servem nem para procriar” e que eles pesariam sete arrobas (unidade de medida para peso de gado). Ora, as falas de Josué Bengtson foram tão racistas e preconceituosas quanto a de Jair Bolsonaro mas, talvez, tenha se sentido na liberdade de proferí-las, porque o Supremo Tribunal Federal, em 2018, afastou a acusação de prática de racismo contra Bolsonaro sob a alegação “de que as manifestações estão abrangidas pela imunidade parlamentar, pois se relacionam às funções parlamentares e de fiscalização, tendo sido proferidas sem conteúdo discriminatório, mas em contexto de crítica a políticas públicas, como as de demarcação de terras indígenas e quilombolas” (STF, 2018).

Apesar da decisão do STF, as falas de Josué Bengtson e Jair Bolsonaro representam violação à Constituição Federal, que estabelece o repúdio ao racismo e a qualquer forma de discriminação; ao Estatuto da Igualdade Racial, que prescreve a validade de ações afirmativas e combate a condutas racistas, e a tratados internacionais como a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as formas de Discriminação Racial, de 1965, promulgada pelo Decreto n. 65.810/69, com a exigência de que o Estado-parte adotasse medidas para combater o racismo. Porém, o racismo é tão naturalizado, tão “normal”, que impede a efetiva aplicação de leis antirracistas.

Por fim, tanto a política de cotas sociais quanto a política de cotas raciais são instrumentos válidos pelo ordenamento jurídico, visto que a discriminação positiva para a inclusão de grupos desfavorecidos possui decisão do STF que as legitima. Ainda, elas têm mostrado importância em sua implementação tanto por garantir oportunidade aos desfavorecidos de escolas públicas quanto por promover a representatividade de negros e indígenas nas universidades e em cargos públicos.

[1] UNICAMP. Rendimento médio de estudantes das políticas de inclusão é o mesmo dos demais alunos da Unicamp, 2019. Disponível em: https://www.unicamp.br/unicamp/noticias/2019/12/16/rendimento-medio-de-estudantes-das-politicas-de-inclusao-e-o-mesmo-dos-demais. Acesso em: 24 jul 2020.

[2] A Universidade de São Paulo teve a acertada percepção que não basta implementar a políticas de cotas para acesso dos estudantes, mas que é fundamental políticas que garantam a manutenção desses alunos. POLI-USP. Apesar de ter melhor desempenho, aluno cotista precisa de apoio, 2018. Disponível em: https://www.poli.usp.br/noticias/3270-apesar-de-ter-melhor-desempenho-aluno-cotista-precisa-de-apoio.html. Acesso em: 24 jul 2020.

Sair da versão mobile