O fetiche da reeleição e seus dilemas: como traduzir o voto em políticas públicas?

Embora difícil numa configuração institucional em que o mandato parlamentar virou negócio privado e vitalício para muitos políticos, talvez esteja na hora de começarmos amplo movimento popular para acabar com a reeleição para o chefe do poder executivo. Alternativa que ampliasse, por exemplo, o mandato para cinco anos.

A ideia não encontra resistência só entre o mandatário atual e os postulantes ao executivo. Causa ojeriza entre os políticos em geral por suscitar debate também sobre a possibilidade do fim da reeleição para vereadores, deputados e senadores. Não à toa a PEC 376, que acaba com a reeleição, estar tramitando há uma década na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara Federal.

A reeleição nunca fez parte da tradição republicana brasileira. Lembremos que ela foi instituída na década de 1990 na era FHC. Nem os presidentes da ditadura civil-militar (1964-1984) permaneciam no cargo ao término do seu período. Mas ditadura não conta para se pensar democracia a não ser para repudiá-la. Vale, porém, como registro de que certas institucionalidades são desenhadas e redesenhadas de acordo com a vontade política e os conflitos de interesses em suas conjunturas localizadas no tempo e no espaço.

Observemos também que, na redemocratização, com a morte de Tancredo Neves em 1985, José Sarney fez de tudo para esticar o mandato de quatro para cinco anos, o que foi objeto de disputas, ameaças e chantagens durante a Assembleia Nacional Constituinte de 1987/1988.

Havia naquele momento a previsão da primeira eleição para presidente da República (que aconteceu em 1989), após o longo período de ditadura, e as eleições municipais de vereadores e prefeitos em 1988. Os governadores já haviam sido eleitos pelo voto direto em 1982, desenhando com mais nitidez o quadro das divisões oligárquicas regionais e nacionais. Foram os governadores que “patrocinaram” o processo de redemocratização, tendo sido eleitos democraticamente sete anos antes da primeira eleição direta para presidente da República.

O PSDB nasceu durante a ANC num racha com o PMDB. Seus próceres vieram com a bandeira “modernizadora” do estado e conseguiram instituir a reeleição na década seguinte através de emenda constitucional.

Para além de casuísmos e interesses privatistas dos atuais e/ou futuros detentores de mandato, minha reflexão se volta mais para os nexos entre voto e políticas públicas. Os estudos dessa área, revigorados a partir das décadas de 1980/1990, resultaram de um clima marcado pelo humor da chamada “reforma do estado” de cunho neoliberal imposta pelo Consenso de Washington.

A onda (que nunca sofreu refluxo e se intensificou agora com toda força) trazia a montante e a jusante liberalização econômica, privatização, desregulamentação do mercado de capitais, alargamento da base tributária, eficiência e economicidade, retirada (contraditória e impossível) do estado da coordenação econômica, dentre outras ações e princípios. A ilusão, enfim, da “mão invisível” do mercado.

O campo dos estudos de políticas públicas compreende pesquisas interdisciplinares sobre diversos temas da teoria política contemporânea, da economia, da sociologia e outras áreas. Um dos subtemas da teoria política seria a própria teoria democrática com pesquisas comparadas sobre regime de governo, relações entre os poderes, accountability vertical (voto, por exemplo) e horizontal, formas de estado e outros.

São estudos, dentre outros temas, em correntes diversas, alinhadas e/ou conflitivas – do marxismo renovado, passando pela teoria materialista do estado, a ortodoxia econômica, o new public management, a teoria da escolha pública, às chamadas correntes institucionalistas e neoinstitucionalistas na história, economia e ciências sociais em geral.

Tenho observado que, de lá para cá (isto é, da década de 1980 aos dias atuais) tem havido uma espécie de distanciamento, se não uma dissonância, entre os estudos, por exemplo, sobre o voto e os relacionados às políticas públicas. Como se fosse natural a intransitividade do voto para as ações concretas dos programas de governo. Em outras palavras, como se o voto não tivesse nada a ver com políticas públicas.

Porém, a pergunta básica é essa mesma: como traduzir o voto em políticas públicas? Essa indagação é necessária porque pesquisas sobre resultados de políticas e mesmo a assunção de determinadas ações e programas por parte de governos, muitas vezes, são realizadas desconectadas dos estudos sobre as instituições e as formas e tipos de democracia.

Isso, como se voto e democracia fossem temas separados e autônomos do tema das políticas públicas em geral. Como se estas últimas fossem objeto de especialistas, independente da política e dos agentes políticos. Como se, enfim, a política fosse atributo dos políticos nos poderes legislativos e nas relações com os demais poderes – e as políticas públicas fossem assunto de especialistas não eletivos.

Duas coisas me vêm ao pensamento em relação ao tamanho (ou reeleição) do mandato executivo. Em primeiro lugar, num único mandato de cinco anos, o governo seria obrigado a fazer coisas para o sucessor continuar – e este seria responsabilizado se não continuasse.

Obviamente, seriam criados mecanismos para assegurar a continuidade. Ou a descontinuidade por decisão legislativa no caso de medidas absurdas – o que seria uma contradição numa institucionalidade que garantisse o caráter de longevidade dos programas de políticas públicas.

Essa ideia nos convida a considerar que não existe mudança institucional em mecanismos isoladamente. Quando se pensa em políticas públicas há que se ter em mente uma realidade sistêmica, e não fórmulas ou receitas prontas importadas de “experts” ou modelos impostos por organismos internacionais.

Em segundo, a longevidade, como mostraram os 14 anos do PT, pode suscitar um desgaste dentro do mesmo projeto de governo que está em andamento. Não se trata de responsabilizar o PT em si, pois aqui não estou analisando os erros e acertos dos programas de governo realizados de 2003 a 2016. Estou falando, em tese, em relação a qualquer governo e programas de políticas.

Isso, no sentido de que conjunturas mudam, e as peças das engrenagens sociais exigem recondicionamento, continuidades e/ou rupturas. O estado é uma dinâmica imbricada na expansão e contradições do sistema capitalista. Ideias mudam, novas demandas, conflitos e necessidades aparecem. A alternância em si de governos não garante nada, mas, pelo menos suscita a necessidade de concertação constante de diferentes forças do executivo e legislativo, além das da chamada sociedade civil, para um projeto coletivo e a continuidade dos programas.

A objeção mais corriqueira nesse debate é a ideia de que um mandato de quatro ou cinco anos é pouco para as realizações de um governo. Ora, evidente que quatro anos sempre serão pouco tempo, dependendo das perspectivas de mudança ou permanência institucional. Dependendo do que se tem em mente sobre o que significam realizações. Estas podem ser bases e fundações para futuras outras realizações.

Entretanto, a cada dia essa noção vem se tornando um fetiche. Reforça e naturaliza a crença de que governos assumem, fazem e terminam a sua “obra” no seu mandato (ou mandatos). Outros são eleitos para fazer a sua “obra”, como se esta não tivesse nada a ver com as ações do governo anterior.

Ora, eleição não é gincana para aventureiros ou celebridades, nem busca de prêmios – e nem governos democráticos são para lunáticos ou qualquer ignorante (diplomado ou não em curso superior) sem noção de políticas públicas. Muito menos para rentistas destruidores do estado.

Nesse sentido, uma das contradições do presidencialismo de coalizão brasileiro pode ser o seguinte. A reeleição para apenas um mandato é permitida para o executivo, mas a reeleição no legislativo pode ser ad eternum. No caso da reeleição parlamentar, talvez tenhamos que pensar em novas formas, por exemplo, permissão para o candidato tentar se reeleger para o mesmo mandato duas ou três vezes. Poderia até haver uma quarentena após esse período para nova candidatura dele mesmo.

Assim, não teríamos o vexame do sujeito ir para a televisão e se gabar sem pudor algum, em entrevista, dizendo que tem dez mandatos (!) na Câmara dos Deputados. Falta de vergonha porque há de se convir: como um político fica 40 anos no poder legislativo sem que haja transformações importantes e cruciais nas estruturas da sociedade para, no mínimo, diminuir as desigualdades sociais e econômicas?

Em outros termos, como o representante exerce seu mandato durante 40 anos, e as políticas públicas ficam a cargo do executivo mediante barganhas em torno das emendas parlamentares, normalmente mecanismo usado para garantir a reeleição dos políticos em seus redutos eleitorais?

A objeção que já ouvi em relação à proibição de reeleições ad eternum de parlamentares é que estaríamos tirando das disputas eleitorais pessoas com experiência política e/ou parlamentar. Ora, quer continuar fazendo política e trabalhando para o país, sua cidade ou estado? Termine seus dois ou três mandatos e continue depois, ao longo da vida, atuando nos partidos políticos, associações, movimentos, escolas e outras arenas. Ajude, por exemplo, a formar novos quadros políticos candidatos nos partidos ou outras instituições.

Não se defende aqui que a renovação etária de políticos seja a solução. O Brasil vem mostrando, nos últimos anos, que jovens podem ser tão retrógrados e reacionários em sua defesa de uma suposta “nova política” como os políticos da “velha política” que criticam.

No capitalismo não existe nova política, a não ser a hipocrisia de chover no molhado. Nova política só em outro tipo de formação social. Porém, nessa sociedade, podemos pelo menos mudar as instituições, ainda que as contradições continuem. Ainda que estejamos adiando problemas. Mais fácil, pelo menos, do que tentar mudar o ser humano. Mais honesto do que a histeria moralista que criminaliza a política ou que a perpetua como negócio privado de oportunistas.

Defende-se, enfim, o fim do fetiche da intransitividade do voto. Se o binômio liberdade e igualdade da democracia carrega a contradição de sermos iguais e livres politicamente e desiguais, economicamente, pelo menos não deixemos que a política e nem a economia sejam sequestradas de nossas mãos. A continuidade de programas de governos por mandatos diferentes e sucessórios não depende só da vontade dos políticos eleitos, mas sim, principalmente, das diversas partes da sociedade em sua vigilância e participação. Mais do que representados, precisamos entrar, permanecer e atuar nos mandatos dos políticos.

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