Da Carta-Testamento às Últimas Palavras à Nação: Vargas, Allende e o dilema latino-americano

Por Itamá do Nascimento – No último dia 11 de setembro, o golpe de Estado contra Salvador Allende completou 47 anos. Tal golpe, liderado por Augusto Pinochet, ceifou não só a democracia chilena como à vida de Allende que foi assassinado no Palácio de La Moneda em virtude da sua resistência. Já no último dia 24 de agosto, completaram-se 66 anos do suicídio de Getúlio Vargas, graças a pressão que sofreu das classes dominantes locais por sua renúncia. Mas o que liga esses dois acontecimentos históricos, separados historicamente por 19 anos? Acredito que dois aspectos ligam a queda dessas duas personalidades da América Latina no Século XX: a) a produção de um documento (no caso de Vargas escrito e, no caso de Allende, pronunciado); b) a interferência estrangeira na dinâmica política dos países em questão. Sobre o primeiro ponto, estou falando da Carta-Testamento que Vargas escreveu antes de disparar um tiro no peito e do discurso proferido por Allende horas antes de sua morte, conhecido como Últimas Palavras à Nação. O objetivo do texto é mostrar as semelhanças do processo político, econômico e social que levaram a queda dessas duas figuras que, mesmo representando tendências ou ideologias políticas diferentes, foram vítimas do mesmo algoz.
Botão Siga o Disparada no Google News

Por Itamá do Nascimento – No último dia 11 de setembro, o golpe de Estado contra Salvador Allende completou 47 anos. Tal golpe, liderado por Augusto Pinochet, ceifou não só a democracia chilena como a vida de Allende, que foi assassinado no Palácio de La Moneda em virtude da sua resistência. Já no último dia 24 de agosto, completaram-se 66 anos do suicídio de Getúlio Vargas, graças à pressão que sofreu das classes dominantes locais por sua renúncia. Mas o que liga esses dois acontecimentos históricos, separados historicamente por 19 anos? Acredito que dois aspectos ligam a queda dessas duas personalidades da América Latina no Século XX: a) a produção de um documento (no caso de Vargas escrito e, no caso de Allende, pronunciado); b) a interferência estrangeira na dinâmica política dos países em questão. Sobre o primeiro ponto, estou falando da Carta-Testamento que Vargas escreveu antes de disparar um tiro no peito e do discurso proferido por Allende horas antes de sua morte, conhecido como Últimas Palavras à Nação. O objetivo do texto é mostrar as semelhanças do processo político, econômico e social que levaram a queda dessas duas figuras que, mesmo representando tendências ou ideologias políticas diferentes, foram vítimas do mesmo algoz.

Na introdução da obra A Revolução Burguesa no Brasil[i], Florestan Fernandes afirma que existem três destinos históricos para a sociedade brasileira: a) o subcapitalismo; b) o capitalismo avançado; c) o socialismo. Alargo essa análise e afirmo o seguinte: esse destino histórico não é exclusivo do Brasil, mas representa o dilema das sociedades latino-americanas. O subcapitalismo é entendido como a alternativa que visa manter o país em uma estrutura arcaica e essencialmente agroexportadora, reforçando o subdesenvolvimento e a dependência. O golpe de 1973 dado por Pinochet, buscou manter (e até aprofundar, vide sua aproximação com os economistas da Escola de Chicago) esse subcapitalismo no Chile; assim como as forças políticas que pressionaram Vargas (e que 10 anos depois, derrubaria Jango) como a União Democrática Nacional (UDN), também visaram o mesmo objetivo.

O capitalismo avançado é visto como o anseio em desenvolver autonomamente o país, através de um processo de industrialização e forte presença estatal na economia. Teoricamente falando, tal alternativa foi proposta na América Latina por intelectuais vinculados a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), como os economistas Raúl Prebisch e Celso Furtado. No caso particular do Brasil, teve expressão significativa no Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), através de teóricos diversos como Guerreiro Ramos, Hélio Jaguaribe etc. Das duas figuras em análise, Getúlio Vargas buscou desenvolver esse destino histórico para o Brasil. Por fim, a terceira e última alternativa para esses países seria o socialismo, visto como um sistema político, econômico e social que caminharia para a construção de uma nova sociedade. Na América Latina, Cuba trilhou essa alternativa e o Chile de Allende aspirava o mesmo caminho, porém, através da destruição lenta da democracia burguesa; diferente do caso cubano que se formou por intermédio de um processo revolucionário e de ruptura.

Os dois últimos destinos se chocam com o primeiro e, por isso, são vítimas das forças políticas que visa a manutenção do subcapitalismo. Porém, essas forças não se instalam apenas internamente nesses países. Tanto Augusto Pinochet quanto Carlos Lacerda (principal figura udenista nos anos de 1950 e o articulador mor da desestabilização do governo Vargas), foram patrocinados e apoiados por forças externas. No caso, essa força externa se encarna na atuação dos Estados Unidos, país que teve um papel fundamental na queda das duas figuras aqui analisadas. Esta articulação imperialista como um fenômeno interno e externo, bem pontuado por teóricos como Theotônio dos Santos[ii], não tolera o desenvolvimento capitalista autônomo dos países latino-americanos e muito menos sua caminhada para a alternativa socialista. E é por isso que a essência da Carta-Testamento e das Últimas Palavras à Nação se volta para a denúncia desta articulação, comprovando empiricamente a encruzilhada em que se encontra esses países. Vou abaixo descrever rapidamente como se deu essa denúncia nos dois casos e, em seguida, encerro com uma conclusão que transforma mais numa reflexão histórica sobre o nosso continente.

Getúlio Vargas foi, sem dúvida, o maior líder político que as classes dominantes brasileiras produziram. Oriundo da oligarquia gaúcha e herdeiro do positivismo que tanto influenciou o país em fins do século XIX e início do XX, Vargas chegou ao poder por intermédio do que muitos na historiografia chama de Revolução de 30, apesar de tantos outros contestarem o termo “revolução” e preferirem “golpe”. Sem entrar no mérito dessa discussão, o fato é que a partir de 1930 o Brasil teve um desenvolvimento acelerado do que Florestan chamou de ordem social competitiva. Essa ordem, representada pelo desenvolvimento capitalista, tem início com a Abolição e consequente Proclamação da República (como ele pontuou na célebre obra O negro na sociedade de classes), mas de fato ganha um oxigênio a partir do fim da República Velha. No poder de 1930 a 1945, Vargas cai através de um golpe de Estado e retorna em 1951, após ser eleito democraticamente em 1950. Em seu retorno, ele encontra uma conjuntura que não estava posta nos anos do Estado Novo, por exemplo. Como analisado por Vânia Bambirra na obra O capitalismo dependente latino-americano[iii], a partir de 1945 começa a se desenvolver um processo de desnacionalização da burguesia latino-americana (e, consequentemente, brasileira), tornando difícil a aceitação das classes dominantes locais do projeto de desenvolvimento autônomo que o projeto varguista buscava colocar em prática desde sua ascensão em outubro de 1930.

Diante disso, Vargas não encontra o mesmo apoio que encontrou outrora e seu governo nos anos de 1950, foi palco de constantes desestabilizações e conflitos. Esse não apoio é uma das grandes insatisfações de Vargas em sua Carta-Testamento, como podemos observar no seguinte trecho: “Voltei ao governo nos braços do povo. A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho”[iv]. Sua busca de desenvolver autonomamente o Brasil, através da criação de estratégias e importantes estatais, é o principal motivo desses conflitos. Isso fica nítido neste trecho: “Quis criar liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobrás e, mal começa esta a funcionar, a onda de agitação se avoluma. A Eletrobrás foi obstaculada até o desespero. Não querem que o trabalhador seja livre”. Mas esse caos tem ligação com a articulação interna/externa que o imperialismo desenvolve e Vargas denuncia: “A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho”. E essas forças internas se aliam às externas, mesmo que isso signifique a quebra do país, o que gera a conclusão que essa quebra traz benefícios a esses dois polos de dominação, mesmo que os primeiros estejam essencialmente em uma posição de “dominantes/dominados”. Ou seja, dominantes com relação as classes sociais subalternas no país, mas dominadas e influenciadas pelas corporações internacionais que a regulam. Essa promíscua relação é assim denunciada pelo político gaúcho: “Não querem que o povo seja independente. Assumi o Governo dentro da espiral inflacionária que destruía os valores do trabalho. Os lucros das empresas estrangeiras alcançavam até 500% ao ano. Nas declarações de valores do que importávamos existiam fraudes constatadas de mais de 100 milhões de dólares por ano”.

Mas a denúncia dessa articulação também é vista em Allende, ao se retratar da conjuntura política chilena dos anos 1970. Primeiro presidente socialista democraticamente eleito na América Latina, Allende visava construir um “socialismo chileno” por vias institucionais e democráticas. Ele acreditava ser possível alcançar o socialismo pela via eleitoral e sem romper revolucionariamente, como fizeram os cubanos, com a democracia burguesa. Essa seria destruída por dentro e através de um processo sucessivo de reformas sociais, como a nacionalização dos bancos e de riquezas naturais como o cobre, utilizado para manter as tendências exportadoras do país. Fracassada suas ideias, Allende faz um pronunciamento horas antes de ser assassinado e nele vários aspectos mencionados por Vargas em 1954 são reproduzidos.

Ele inicia o pronunciamento, citando diretamente os responsáveis por sua queda: os militares chilenos que foram ponta de lança, assim como o caso de Jango em 1964 no Brasil, da manutenção do subcapitalismo. E assim ele denuncia os responsáveis diretos por aquele golpe: “A Força Aérea bombardeou as antenas da Rádio Magallanes. Minhas palavras não têm amargura, mas decepção. Que sejam elas um castigo moral para quem traiu seu juramento: soldados do Chile, comandantes-em-chefe titulares, o almirante Merino, que se autodesignou comandante da Armada, e o senhor Mendoza, general rastejante que ainda ontem manifestara sua fidelidade e lealdade ao Governo, e que também se autodenominou diretor geral dos carabineros”.[v]

E, talvez por ser um socialista convicto, Allende consegue ser objetivo ao descrever os responsáveis por aquela investida golpista: “Neste momento definitivo, o último em que eu poderei dirigir-me a vocês, quero que aproveitem a lição: o capital estrangeiro, o imperialismo, unidos à reação criaram o clima para que as Forças Armadas rompessem sua tradição, que lhes ensinara o general Schneider e reafirmara o comandante Araya, vítimas do mesmo setor social que hoje estará esperando com as mãos livres, reconquistar o poder para seguir defendendo seus lucros e seus privilégios”. E encerra o pronunciamento, afirmando que as forças políticas que o derrubaram eram fascistas, que a todo momento buscaram desestabilizar seu governo. A menção ao fascismo, lembra a obra de Theotônio intitulada Socialismo ou fascismo[vi], mostrando que quando a alternativa socialista não consegue se consolidar o resultado prático é o advento do fascismo como resposta das classes dominantes aos avanços alcançados.

Enfim, como podemos perceber a articulação imperialista que se apresenta interna e externamente, existe e se movimenta para impedir duas alternativas: aquela que busca um desenvolvimento capitalista autônomo e outra que objetiva a construção do socialismo. Em ambos os casos, Vargas e Allende buscaram romper com estruturas arcaicas que mantinham Brasil e Chile, respectivamente, inseridos em um subcapitalismo de natureza agroexportadora e serviçal dos interesses estrangeiros. A nacionalização do petróleo brasileiro e do cobre chileno foram atitudes ousadas demais em países que, historicamente, colocaram suas riquezas a serviço de forças exógenas. Porém, tal comparação histórica não morre em Vargas e Allende. O golpe de Estado dado em Evo Morales na Bolívia e a constante tensão vivida na Venezuela de Nicolás Maduro e na Nicarágua de Daniel Ortega; são exemplos atuais de como o dilema latino-americano permanece vivo. Getúlio Vargas e Salvador Allende são só dois exemplos de como a busca por um capitalismo autônomo ou pela construção do socialismo, sofrem ataques do mesmo algoz. São exemplos que mostram as limitações das vias pacíficas, independente da alternativa escolhida. Aqui, trabalhismo e socialismo se unem, resta saber quem estará disposto a romper de maneira incisiva com as estruturas que mantém o funcionamento do subcapitalismo na América Latina.

Por: Itamá do Nascimento.

Notas:

[i]      FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil. São Paulo: Globo, 2006, p. 29.

[ii]     WASSERMAN, Claudia. A teoria da dependência: do nacional-desenvolvimentismo ao neoliberalismo. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2017.

[iii]   BAMBIRRA, Vânia. O capitalismo dependente latino-americano. Florianópolis: Insular, 2019, p. 98.

[iv]    Retirado do seguinte endereço: <https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/plenario/discursos/escrevendohistoria/getulio-vargas/carta-testamento-de-getulio-vargas >.

[v]     Retirado do seguinte endereço: <https://www.marxists.org/portugues/allende/1973/09/11.htm?fbclid=IwAR3zNeGSvQrl_3saepYvUdz6oPo28M_fOsYHyx0uSw9n3KWo_zlrA2xefjg>.

[vi]    SANTOS, Theotônio dos Santos. Socialismo ou fascismo: o novo caráter da dependência e o dilema latino-americano. Florianópolis: Insular, 2018.

  1. A Campanha da Legalidade de Brizola, derrotando o golpe com a convocação do povo, armando-o como é seu direito para defender a Constituição e formando uma Rede de Rádios da Legalidade, é a resposta histórica para a Carta Testamento de Vargas e de Allende, que em seu último discurso, ainda disse acreditar no legalismo dos militares chilenos. Se aceitam, posso escrever sobre este tema. Chávez não se imolou e Lukaschenko também parece que vai seguir o exemplo de Brizola, convocando o povo a resistir ao golpe otanista!

  2. 4 de setembro de 1970, o médico Salvador Allende vence as eleições pelo voto popular para presidente no Chile, com uma maioria de 36,2% dos votos. Pela primeira vez na América Latina, um político socialista/comunista chegava ao poder de forma democrática.
    Assim que foi eleito Allende declarou pelos meios de comunicação que faria um governo marxista, prometendo implantar a reforma agrária, controlar as importações e exportações e nacionalizar os bancos.
    Veja 45% do capital do país estavam nas mãos de investidores estrangeiros, as minas de cobre eram praticamente de domínio americano e 80% das terras eram propriedade de latifundiários,um pais por assim dizer sub-capitalista .O pais tinha uma enorme dívida do Chile era de mais de quatro bilhões de dólares, a segunda maior do mundo.
    Allende começou a fazer as reformas que havia prometido: estatizou bancos e grandes empresas e, em 1972, fez o mesmo com as minas de cobre. Essas mudanças econômicas e sociais tiraram o país da péssima situação em que se encontrava. Ja no ano de 1971 teve um crescimento econômico de 8,5%, o segundo da América Latina.
    Mas em 1972, a situação se inverteu. O país entrou em crise, o capital nacional e estrangeiro desapareceram, o crescimento econômico cessou e a produção agrária caiu vertiginosamente. Isso gerou escassez de alimentos, principalmente porque a população e as empresas começaram a fazer estoques, temendo dias ainda piores.
    A primeira tentativa fracassada de golpe para derrubar Allende do poder aconteceu no final de junho de 1973. O descontentamento da população era tão visível quanto o crescente desejo de mudanças. A fome e a falta de produtos básicos levaram a uma revolta. Os conflitos isolados eram o prenúncio de uma guerra civil.
    Queda em confronto violento
    No dia 11 de setembro de 1973, os militares tomaram o poder. O Palacio de la Moneda, em Santiago, foi sofreu bombardeios aéreos. O confronto inevitável foi sangrento para ambas as partes. O general Augusto Pinochet assumiu o poder como presidente da Junta de Governo, formada a partir desta data.
    Em 17 de dezembro de 1974,o militar Pinochet toma posse como presidente (como ditador) do Chile, por 17 anos. A economia do país, voltou a se estabilizar.
    “O mandato de Allende é lembrado como um período de glórias e desgraças” Veja bem, Allende foi eleito por 36,2% dos eleitores, sendo que 63,8% dos eleitores eram contra o seu programa marxista,portanto a maiaoria era contra o seu programa marxista, o mesmo não poderia implantar o comunismo no Chile ou seja onde a maioria democraticamente eram contra.

Deixe uma resposta