Venezuela: quem ganha e quem perde?

Exceto se declararmos a nossa própria versão da Doutrina Monroe ("América do Sul para os sul-americanos!"), a derrota brasileira será implacável. 

Conforme o próximo sábado, 23 de fevereiro, se aproxima, a tensão em torno da crise na Venezuela se acirra de uma forma sem precedentes.

Desde que o autodeclarado presidente interino Juan Guaidó solicitou uma ação internacional coordenada de ajuda humanitária para o país, cuja entrega está marcada para ocorrer amanhã, a região transformou-se num caldeirão de incertezas e medos. A deflagração de um conflito armado, algo que parecia impossível, hoje soa cada vez menos improvável.

O presidente Nicolás Maduro fechou as fronteiras do país com a Colômbia, com o Brasil e proibiu vôos entre a Venezuela e Curaçao, ilha que também servirá de ponto para a ação de ajuda humanitária, além de ter fechado, por fim, a fronteira marítima venezuelana. Segundo Maduro, a iniciativa internacional possui outras intenções: servir de pretexto para hostilidades fronteiriças e legitimar uma invasão por parte da grande potência patrocinadora do evento, os Estados Unidos da América.

Parece haver certo consenso a respeito dos maiores riscos se encontrarem na divisa entre Colômbia e Venezuela. No ano passado, a Colômbia tornou-se o primeiro “parceiro global” da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) na América Latina.

Criada durante os anos iniciais da Guerra Fria entre EUA e União Soviética, vale a pena lembrar o que disse o primeiro Secretário Geral da OTAN – Lorde Hastings Lionel Ismay – acerca da função essencial da organização para o território europeu: “manter a União Soviética fora, os americanos dentro, e a Alemanha para baixo“. Ou seja, trata-se desde o início de uma aliança militar subserviente aos interesses hegemônicos norte-americanos, cujo objetivo era não apenas neutralizar seu grande rival, mas evitar o ressurgimento militar de seu mais estratégico aliado na Europa continental.

Daí decorre que não pode haver qualquer ilusão a respeito da presença militar norte-americana no nosso continente, mesmo que sob o polido traje de um interesse recíproco de proteção. Convenhamos, o suposto inimigo jamais nos ameaçou.

Um poderoso lembrete a respeito disso é o recente estardalhaço causado pelo lançamento do livro de um ex-diretor do FBI, Andrew McCabe, em que o autor revela uma conversa do presidente Donald Trump com agentes de inteligência. De acordo com McCabe, Trump teria dito, em julho de 2017:

Eu não entendo porque não estamos olhando para a Venezuela. Por que não estamos em guerra com a Venezuela? Eles tem todo o petróleo e estão na nossa porta dos fundos.”

BRASIL

Bem, adivinhem qual é o outro país que tem petróleo e está localizado na “porta dos fundos” dos EUA? Não é necessário abrir um Atlas geográfico para saber que é o Brasil.

Isso posto, não deixa de ser espantosa a atuação do Ministério das Relações Exteriores do novo governo. Ernesto Araújo comprou a ideia de “desideologizar” a política externa brasileira, o que levaria qualquer um a pensar que seria o caso, portanto, de identificar e buscar a realização dos verdadeiros interesses materiais da Nação (na remota situação de não concluir o óbvio, isto é, que qualquer política externa será ideológica, mas que podem haver ideologias diferentes).

Em troca do imaginário fim da ideologia, porém, Ernesto Araújo conduz seu ministério a perseguir os interesses materiais dos Estados Unidos da América!

A sanha ocidentalista do ministro não apenas rompe com toda a tradição diplomática do Brasil de mediar interesses regionais, como também arrisca arremessar jovens brasileiros contra um país tão sofrido quanto o nosso apenas para entregar de mão beijada as reservas petrolíferas venezuelanas a multinacionais norte-americanas.

O que significaria, para nós, participar dos esforços intervencionistas norte-americanos na Venezuela?

Exceto se declararmos a nossa própria versão da Doutrina Monroe (“América do Sul para os sul-americanos!”), a derrota brasileira será implacável.

ESTADOS UNIDOS

O país mais poderoso do planeta está numa encruzilhada. Depois de duas décadas se aventurando no Oriente Médio, caiu em descrédito até mesmo entre os aliados. Seu imperialismo naquela região resultou, por exemplo, na profunda crise migratória que até hoje abala os alicerces da União Europeia e no surgimento do Estado Islâmico. Não à toa, a maior parte da Europa prefere manter distância do que ocorre na Venezuela.

Mas não parou por aí. Os EUA saíram derrotados da Síria, que com o apoio maciço da Rússia foi capaz de evitar o mesmo destino da Líbia, que viu sua tradicional cultura e Estado nacional serem dizimados por bombardeios norte-americanos.

Os custos da aventura no Oriente Médio foram tão grandes que os EUA se viram obrigados a mudar de estratégia. A derrocada, inimaginável após a queda do Muro de Berlim e o fim da URSS, começou ali, no Iraque e no Afeganistão.

A hegemonia moral dos Estados Unidos entrou em declínio, e muitos países passaram a buscar proximidade com um campo geopolítico alternativo. O Brasil participou desse movimento, e o BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) simbolizaram com sucesso este projeto. Naturalmente, a liderança material do processo pertence aos chineses, que possuem mais condições econômicas de alterar a rota da geopolítica mundial.

Na América Latina, os chineses substituíram os EUA como principal parceiros econômicos. Isso deu à China um enorme peso na condução dos assuntos regionais.

É por isso que o ônus está totalmente ao lado dos norte-americanos. Se quiserem aprofundar a influência sobre a região, que consideram seu quintal, terão que produzir uma nova conjuntura econômica favorável, que traga desenvolvimento e seja exportada de sua própria matriz. A elite dos Estados Unidos, contudo, está afogada no rentismo financeiro, enquanto o Estado chinês coordena toda a estrutura produtiva do maior país-fábrica do mundo.

Resta aos EUA intervir militarmente. Com isso, certamente garantirão a estabilidade do suprimento de petróleo por muito tempo. Após décadas de erros custosos mundo afora e de declínio econômico, uma longa resistência venezuelana pode ser custosa demais para a sua hegemonia.

RÚSSIA

A Rússia possui enorme influência militar sobre a Venezuela, e não parece que pretende abrir mão. Aqui o cenário é mais nebuloso:

Se a Rússia ganha ou perde com o resultado da crise na Venezuela, depende muito de seu horizonte estratégico e do destino final da República Bolivariana.

CHINA

As ações do Estado chinês são de longuíssimo prazo, o que coloca a potência asiática em vantagem contra qualquer competidor.  A China já garantiu a dependência econômica da Venezuela, e qualquer governo venezuelano precisará sentar à mesa com representantes chineses para decidir o futuro do país.

Se Maduro resistir às pressões externas, naturalmente a China sairá com uma vitória política imensa. Mas isso se dará menos em razão da resistência venezuelana e mais em função da derrota dos Estados Unidos.

Por outro lado, nos bastidores o governo chinês já conversa com o grupo de Juan Guiadó, possível vencedor da disputa interna de poder contra Nicolás Maduro.

Um governo Guaidó abriria a economia e teria mais acesso a crédito internacional, possibilitando arcar com os robustos compromissos financeiros adquiridos com a China nos últimos anos. E a dependência econômica em relação à China provavelmente impediria que a abertura do setor petrolífero ficasse apenas nas mãos de multinacionais da América do Norte.

Enquanto os EUA se atolavam no outro lado do mundo, os chineses jogaram o jogo grande.

Certamente o poder militar e o exercício da dominação ideológica vindos de Washington são poderosos. Poder militar, no entanto, não pode ser utilizado ilimitadamente e sem relações de causa e efeito consideravelmente imprevisíveis. Não há liderança, muito menos hegemônica, que se paute indefinidamente na incerteza.

Já a ideologia, quando não está acompanhada de condições materiais correspondentes, pode-se revelar efêmera demais.

Independentemente do desfecho, a posição chinesa possui mais firmeza que qualquer outra para ser assegurada. O grande perdedor será o Brasil, junto com o restante do continente sul-americano.

 

 

 

 

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